“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

segunda-feira, 25 de junho de 2012

16° capítulo


16
    quando lívia pressentiu passos em sua direção, ainda não sabia que eram os de José Inácio e seu Antonio. Nem eles ainda estavam de todo despertos da cena que tinham acabado de presenciar na Igreja. Lívia descobriu seus rostos pálidos no meio da névoa, pensando que eram apenas rostos manchados de branco.  O cão Argos farejou os estranhos, rosnou em aviso, mas Lívia tocou-lhe na cabeça imensa e ele aquietou-se, num resfolegar conformado, mas ainda atento.
            Quando os dois homens tentaram dizer-lhe algo é que ela se deu conta do tremor nas vozes, das falas vacilantes e do espanto, no olhar. Menina, aonde vai? Não tens medo de caminhar por aí? Lívia tinha medo, mas reconheceu, afinal, vozes amigas. Não sabia exatamente de onde os conhecia, mas tinha a impressão de já tê-las ouvido outras vezes. Sabia-se segura e calma ao lado do cão. O mais alto dos dois homens disse-lhe que vinham ambos da Igreja e assistiram a uma cena inacreditável e narraram, como puderam, o voo inconcebível do Padre Luis, pela nave central do templo. Lívia ouviu incrédula, mas deu-lhes o benefício do espanto, já que coisas efetivamente estranhas aconteciam, então por que não poderia ser mais esta uma delas?.  E então, o que vocês fizeram? Seu Antonio, com alguma vergonha, repetiu que fugiram apavorados. E as mulheres, ficaram lá, sozinhas? Sim, sozinhas ficaram, mas não pareciam ameaçadas. José Inácio parecia ainda duvidar de seus olhos, por isso falava por monossílabos, cauteloso, sem saber como exprimir aquela cena. Não é sempre que se pode testemunhar este mundo fantástico que nos rodeia, afinal o esforço da razão é garantir o sossego de nosso coração com a lógica da familiaridade, da regularidade, do que se espera e se alcança. Ninguém está efetivamente preparado para uma cidade mergulhada em névoa há mais de cinco horas, a supor pelo cálculo mental do tempo, e ainda por cima a visão de um padre desafiando a lei de gravidade enquanto fiéis mergulhavam o rosto no chão, como se visse uma assombração. Também eles viram, mas, ao contrário das mulheres, preferiram correr, sair em qualquer direção para não ter de aprender que aquele mundo, aquela cidade, vivia o assombro de ser tomada pela loucura.
            O cão agora liderava a jornada. Os dois homens fizeram-se amigos de Argos que os recebeu com orgulhosa indiferença, diferente do afeto que demonstrava por Lívia. Não se pode negar que fizeram amizade, tanto que o cão liderava a caminhada, como se soubesse exatamente para onde ia, mas o cão sabia a quem se pertencia.
            José Inácio, seu Antonio e Lívia eram agora três pessoas e um cão a partilhar o enigma. Sequer podiam respirar com o conforto do ar livre, pois a névoa ardia e o coração deles disparava de medo. Com estes temores, os três encontraram, finalmente, um banco e, pela silhueta desenhada em frente, imaginaram que estavam, de novo, na Praça da Matriz, o que lhes fez supor que andavam em círculo e onde esperavam encontrar alguém que lhes pudesse explicar o que se passava. O prédio da prefeitura ficava logo defronte da Igreja, assim não seria muito difícil, tateando e amparando-se uns nos outros, subir os degraus e entrar no prédio, em busca da alguma informação.
            Lívia lhes garantiu que fora o cão que lhes havia conduzido de volta, talvez porque tivesse algum tipo de faro que os levasse a uma explicação ou talvez fosse o plano dele nos enviar de volta.
            Aos poucos, em passos cautelosos e breves, entraram os três, ou devesse dizer, os quatro, no prédio da prefeitura, porém não encontraram viva alma, pelo menos na entrada. Tiveram, pois de arriscar-se em subir até o andar superior, onde ficavam as salas dos secretários para, quem sabe, encontrar alguém que os assistisse.
            Ouviram ruído de vozes no fim do corredor, coberto pela cerração. Eram vozes aflitas, em tensa conversação. José Inácio notou que discutiam com certa aspereza. Foi seu Antonio, porém, quem supôs ter identificado uma das vozes: É o prefeito que está falando. Acho que estão a reunir-se. Bom que assim fosse, porque nesse caso alguma autoridade poderia informar o que se passava. Continuaram caminhando em direção às vozes e puderam ouvir, nitidamente, a confissão angustiada de algum participante de que nada sabia, era tudo surpresa ou coisa pior, podia ser algum mal insanável. Ainda por cima, somente a nossa cidade estava coberta pelas nuvens, o tempo congelado, as comunicações bloqueadas. Nenhum de nós conseguiu escapar dos limites do município e é como uma prisão. Outra voz relatou fatos inacreditáveis, como a flutuação do pároco em meio a uma missa em que pedia pelo fim da névoa. Estamos então entregues a um fenômeno inexplicável e não podemos fazer nada? Como era isso possível? Alguém poderia dar um palpite, disse o prefeito seriamente preocupado.
            Lívia ameaçou interromper a reunião, mas José Inácio a deteve pelo braço enquanto seu Antonio recolhia-se ao silêncio. Saíram como entraram, sem que ninguém os tivesse visto. A conversa na sala de reunião fora o bastante para que os três percebessem que ninguém tinha a menor ideia do que se passava, estando eles então entregues ao capricho da névoa. Talvez apenas o cão Argos pudesse ajudar, a despeito de ser um simples animal.
            Desceram de volta à praça onde já centenas de pessoas se aglutinavam num comovente abraço de desespero e temor.
            Ao povo, que esperava com paciência, juntaram-se outros que mais vinham, de todos os lados, em silêncio reverencial, esperando algum sinal, alguma explicação. As orações eram sussurradas, principalmente, pelas mulheres mais velhas. A porta principal da igreja abriu-se lentamente e de dentro dela saiu Padre Luis, caminhando como que sobre nuvens, seguido das beatas entoando hinos de louvor.
            Do meio da névoa, vozes misericordiosas apelavam pela compaixão de Deus, esperando não fosse Ele surdo aos apelos de tão humildes suplicantes em vasta procissão.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

15º capítulo


15
    precariamente rESGUARDADOS DO frio, cobertos pela névoa, um punhado de homens e mulheres insones, talvez dez, talvez vinte, esperava condução no ponto do ônibus. Vistos de longe, não eram mais que fantasmas; vultos recobertos pelas nuvens, em que se não era possível definir os rostos, nem tampouco saber-lhes da fisionomia. Podia-se, contudo, adivinhar-lhes o destino e a identidade, pelas marmitas que levavam debaixo dos braços. Era o almoço, ou bóia-fria, que, ao meio-dia, seria aquecido em pequenas fogueiras, caso fosse o almoço nas construções civis; ou em elegantes marmitas às quais se agregavam sofisticadas tomadas elétricas; em outras mais, ainda refinadas, prometia-se um banquete, se comparadas com os precários utensílios de alumínio amassado onde se depositava o rango dos operários. Também neste item desenhava-se o destino das classes sociais, pois, nas primeiras marmitas, guardava-se, não uma refeição, mas a gororoba, o rango, a boia, o grude, já nas outras, podia-se dizer que eram repastos variados, muito além do arroz, feijão, macarrão, farinha e uma ocasional asa de frango assada. Nas outras, havia salada e sobremesa, havia uma refeição que se podia comer com os talheres elegantemente manipulados entre o indicador e o polegar, ocorrendo a um ou outro comensal levantar, doutoralmente, o dedo mindinho, à guisa de bom tom, e não com toda a mão cerrada em volta do cabo do garfo, à moda de garra de ave de rapina, para garantir a posse única da refeição e defendê-la de algum possível predador. Era assim como faziam os humildes marmiteiros, os boias-frias.
            Bendita língua nossa que nos permite relatar quantas sutilezas num só agarrar de garfos e de facas e com elas sugerir uma luta de classes. Pois esses homens e mulheres e suas marmitas já esperavam, não se sabia por quanto tempo, a condução que não vinha. Também não compreendiam por que todos os relógios pararam na hora de vinte para as sete e assim perdia-se a referência e o tempo se mostrava infinito, impossível medir, e não se sabia se estavam ou não atrasados.
            Suas vozes abafadas exerciam o penoso diálogo, sussurrado em uma reverência não se sabe a quê, ou a quem, ou medo segredado entredentes.
            Mas alguém sabe me dizer o que está se passando nesta cidade?
            Não, ninguém sabe ao certo, mas estamos todos com muito medo
            O que significa este nevoeiro? Quase não consigo respirar...
            É, tem alguma coisa errada. Nunca vi isto
            Minha vó falava que no tempo dela às vezes vinham umas nuvens dessas e a gente nem conseguia respirar direito...
            Será que isto passa logo?
            Sei lá... Até meu relógio parou.
            E os ônibus? Acho que não estão rodando. Ouvi dizer que a cidade está toda parada e que ninguém sabe mais o que fazer.
            Então vamos para a Praça da Matriz, quem sabe lá a gente encontra alguma resposta?

            Então sim, dezenas de pessoas, anônimas criaturas, seguiam em procissão, arrastando suas incertezas como correntes pesadas atadas aos pés, como prisioneiros dos eventos escandalosos que impunha a todos seu silêncio fatal.
            Então porque a nós acontecem estas coisas? Já não bastam as dores com que vivemos?
            Ah que são reflexões incomuns a um povo simples, vivendo de satisfazer suas humanas condições, com mais biologia do que filosofia. Mas ensinam as tragédias e os sofrimentos a pensar sobre o destino, e quem sabe não havia, entre a multidão desamparada, algum distraído filósofo? Que isso de pensar não é patrimônio de ninguém, todos podem fazê-lo, basta que para isso tenham ganas.
            Por conta deste nevoeiro imprestável, ao menos para alguma coisa serviu, para que esta inocente multidão soubesse um pouco mais de si mesma, do quanto podia valer, de quanto direito tinha, de viver, de morrer, mais ainda de ser dona de sua própria vida; vivem de nunca chegar e se bastar.
            Poderia ser o nevoeiro motivo para saber, como soube aquele tal Gil Vicente, que, há cinco séculos passados, disse que eram os pobres a vida dos outros e morte de suas próprias vidas (estou a repetir-me, mas é necessário que se recorde o que já declarou seu Antonio). Disse-o pela boca de um miserável camponês, sem reforma agrária, nos mesmos cinco séculos que ainda hoje suportam. De como isto tudo passou escrito, porém, esse povo não podia ler,  não lhes foi dado tempo suficiente para saber de si mesmos, nem suficientes recursos para comprar livros.
            A longa fila se arrastava em meio à neblina, vacilante, tropeçando no asfalto, guiando-se como por instinto, pelos caminhos que todos os dias percorriam, quando atrasavam os ônibus, ou quando o dinheiro acabava e não podiam pagar a passagem até o centro da cidade. De modo que, para esta multidão, caminhar pela névoa não se constituía em alguma aventura. O que lhes causava temor eram as névoas, a brancura irritante do ruço e a acidez nos olhos, porém a vontade de chegar, de desaparecer o nevoeiro, justificava a ousadia.
            E foi seguindo aos poucos, lentamente, a estranha procissão sem devotos. Buscavam a Praça da Matriz, onde ficava a Prefeitura. Supunham que lá teriam informações mais precisas do que acontecera com a cidade, com as ruas, com as avenidas, com a tarde, com o dia e provavelmente a noite. Quando viesse a noite, disseram eles, a escuridão tomará conta de tudo e seremos tragados por alguma coisa muito ruim e feroz.
            Fazia silêncio, um silêncio hostil e algumas pessoas choravam, baixinho, para que os outros não ouvissem e com isto perdessem o pouco de coragem que ainda acumulavam.
            Chegando à Praça, espalharam-se pelo chão, largados como trouxas de roupas inúteis.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

14º capítulo


14
    afinal, conseguiram OS dois alcançar a larga avenida que os conduzirá até a Praça da Matriz onde esperam obter mais notícias sobre aquele dia fatídico. José Inácio e o velho Antonio tateavam pelas paredes, esbarravam em postes e árvores, dois trôpegos bêbados e quase cegos, rompendo a cerração, como se o caminhar fosse uma faca só lâmina, cortando a névoa densa que se repartia em dois para logo em seguida recompor-se em sua integridade atrevida. Como cegos que vão para o abismo, como aqui já foi dito, os homens mais pareciam assombrações, porque seus corpos não eram delineados, eram antes duas massas incorpóreas, tateando com os braços à frente do corpo e quatro olhos inúteis tentando enxergar através da fumaça. Cegos, não eram, pois, muito menos algum Tirésias que sabia dizer coisas incômodas para quem se supõe a salvo das culpas, mas eram mesmo dois amigos solitários desafiando o desconhecido em nome da sobrevivência e da irritante sina da inquietude humana.
            Que poderiam fazer esses desgarrados no meio da neblina? Conversariam sobre as causas do estranho acontecimento, mas sem poderem expressar-se como se expressava, por exemplo, o comandante da base, isto é, com terminologia científica, utilizando palavras incompreensíveis,  que os deixariam apreensivos e mais apavorados ainda se pudessem ouvi-las e entendê-las. Também de nada lhes adiantaria os nomes em inglês com que o comandante ilustrava seu conhecimento. Anunciava estes pareceres por meio de bilhetes trocados nos limites da cidade, uma vez que todas as comunicações estavam interrompidas e as ruas pareciam um cemitério de pessoas vivas cujas vozes eram cada vez mais inaudíveis, conforme ia avançando a tarde. E se por ventura pudessem ouvir os termos em que foram lavradas as razões e as causas, também de muito pouco serviria pelo simples motivo de que, afinal de contas, o comandante não conseguia explicar o que sucedera com a atmosfera e nem quando levantaria o ruço. José Inácio e o velho Antonio tinham explicações mais modestas, sem os nomes complicados que o comandante usava. Suas explicações se baseavam nas histórias contadas na beira do cais, no passado, e na intuição escatológica, quer dizer: no sentimento que ambos compartilhavam de que se tratava de uma intervenção maligna, obviamente uma punição por tantos desmandos e pecados cometidos pelo povo. Mas tu achas mesmo que Deus pune a todos, que não tem gente que está sofrendo sem merecer? A pergunta de seu Antonio trazia de volta as cidades destruídas que na Bíblia se contavam, como Sodoma e Gomorra, e tantas outras com que o Padre Luis ameaça os hereges. É, seu Antonio, o senhor pode ter razão. Mas vai entender o querer de Nosso Senhor? Estas nuvens ainda estão claras porque o sol está de fora, mas logo mais, vamos ter as trevas, igual o pastor leu uma vez no culto deles lá, na igreja que minha mãe freqüenta. Num ponto concordavam: só havia uma causa para o estranho fenômeno, até agora inexplicável: a ira do Senhor estava entre o povo, por conta de nossos pecados, que são muitos. Explicação aceitável, porque sustentada pelos milênios passados, depois de tantas cidades terem sofrido o mesmo destino sem possível remorso. E quando Deus pune não quer saber se há inocentes, e se algum houvesse, é possível que Ele suspendesse a pena. Mesmo isto já ocorreu, quando Lhe disseram que havia pelo menos um inocente numa cidade a ser punida. Não adiantou, o fato é que todos se tornaram culpados. Foi assim nas cidades que viraram cinzas. A gente só não tem o cheiro de enxofre, mas só por enquanto, isto ajuizou José Inácio que de religião provava todas, de todas tirava seu pitéu. Queria se garantir de todas as maneiras de tratar com Deus: as rezas no latinório do Padre Luis, a fúria evangélica do pastor Luciano, a benzedeira que uma vez lhe curara de uma espinha de peixe no pé, os atabaques do candomblé na ponta do caís, onde as putas iam pedir proteção aos orixás, porque o trabalho delas é o prazer dos homens, mas só elas sabem quanto isto lhes custa. Já seu Antonio, português de boa cepa, não admitia as licenciosidades do amigo; censurava-lhe a irreverência e dizia que bem podia ser estas religiões falsas a causa da ira de Deus e do nevoeiro. Que para ele, só havia a igreja de seus pais e dos pais de seus pais, cuja cruz se estampava nas caravelas que inventaram este país e que até por esta cidade andaram. .Não acredito nisso, seu Antonio. Deus não vai punir uma cidade inteira porque tem gente passando de uma religião para outra...A gente só quer se garantir com um lugar aquecido para quando o inverno chegar. Não dizem que a morte é fria como o inverno? Então, a morte bem pode ser um lugar como este que estamos vendo.
            Seu Antonio permaneceu quieto, interrompendo a caminhada vacilante. Olhos para cima, provavelmente com nostalgia do azul, ajuizou solene: Seu José Inácio, isto são mistérios que estão longe de nosso bico. Como todo mundo sabe, nós só vamos pagar a conta mais amarga, que é como sempre foi: os pecados são dos que têm, mas as  penas ficam para quem nada tem.  Já não se disse, na minha terra, que nós somos a vida dos outros e morte de nossas próprias vidas? Pois então.
            E em silêncio, de mãos cerradas, chegaram à praça da matriz, cujo relógio marcava dez horas, desde sempre, ou desde quando o nevoeiro começara.
            Esperavam encontrar uma multidão, reunida em busca de alguma explicação, mas tudo estava já deserto. Permaneceram no centro da praça, de frente para a Igreja, que ainda estava fechada, mas podiam-se ouvir vozes lá dentro. Vozes sussurrantes, recitando vagamente palavras ritmadas, como um estranho coral. Tateantecaultelosos, os dois empurraram a porta principal. Não conseguiram abrir, estava emperrada. Buscaram então a porta lateral, por onde entraram devagar, arregalando os olhos para poderem enxergar por entre as brumas e as lágrimas ardentes que seus olhos marejavam, não de emoção ou temor, mas por conta da acidez da névoa. Se o coração acelerava, foi por conta do medo, do misterioso temor do que iam, por ventura, encontrar ou ver.
            Os dois andarilhos ficaram fascinados e paralisados de temor e reverência.Viram a assembleia no instante em que o celebrante, Padre Luis, flutuava pelo meio da nave central, a dois metros do chão, braços abertos, rosto curvado sobre o peito, crucificado em pleno ar , enquanto as beatas, esparramadas no chão úmido, clamavam em êxtase Aleluia, Aleluia  em meio a uma estranha melodia.
            José Inácio e seu Antonio ajoelharam-se, persignaram-se, de olhos acesos, rostos pálidos, corpos paralisados ante a cena inacreditável. Viram os prodígios no dia dos prodígios.

sábado, 2 de junho de 2012

13º capítulo


13
    estou aqui REGISTRANDO estas más palavras escritas por tortas linhas, de um relato imaginário, no momento em que, de minha janela, pouco posso ver, senão o nada opaco do nevoeiro que apareceu, sem mais, na frente de todos nós desde hoje, pela madrugada, como o leitor já deve estar cansado de saber Percebo o grande cenário brancoleitoso e sinceramente ando preocupado com o que pode acontecer. Esta cidade é simples, com uma população rudimentar, sem sofisticações, um povo sem memória, sem as armas do cosmopolitismo, sem a proteção de uma comunidade esclarecida. É uma cidade desesperada para sobreviver com as benesses que recebe do turismo e dos empregos na prefeitura que, desgraçadamente, é uma das mais ricas do país, graças às facilidades do petróleo. Percebo, desde que me transferi para cá, alguns novos ricos, todos com cargos no governo municipal. Mas isto não me diz respeito, são situações que se repetem por todo o país e esta cidade não é diferente das outras. Estamos cansados de saber que, em nosso país, a corrupção é uma indústria nacional. No momento, preocupa-me é o relógio da Igreja Matriz, única referência temporal que ainda restaria funcionando, que já não mais indica hora certa, está congelado, como todos os outros relógios. Sei disto porque me confidenciou um vizinho, com voz soturna de conspirador. Mesmo sem poder ver de longe os dois ponteiros, quem lá subia (creio que um zelador da igreja) e de cima da torre berrava as horas, já emudeceu. Enfim, não se sabe mais do tempo por aqui e sem o tempo, o que somos nós? A última vez que berrou as horas ouviu-se “dez e quinze”, depois, nada mais se pôde ouvir, de modo que vivemos ma situação inquietante: a volta de nós, presume-se, o tempo segue seu curso, mas aqui dentro, possivelmente por causa do nevoeiro, o tempo parou, melhor seria dizer: o tempo congelou. Soube, ainda por outro vizinho de janela, que algumas pessoas seguiram até os limites da cidade e, ouvindo as vozes do outro lado da estrada, podia-se estar a par dos acontecimentos do resto do mundo. Lá, do outro lado, havia sol e clima regular, estando o ruço apenas em nossas ruas e casas, formando uma espécie de paredão fluído. Não creio ser necessário dizer que estamos todos inquietos, já não há mais alimentos disponíveis nas casas, os supermercados não abriram, porque ninguém se atreve a sair para as compras, e mesmo são raros os estabelecimentos que iniciaram o trabalho. O céu, brancoleitoso, é iluminado por um precário disco solar, frio, sem a exuberância de ontem à tarde quando o verde, o azul e o mar combinavam um escândalo de beleza natural. Tudo parece ter-se diluído numa fantasmagoria inquietante.
            Fico a imaginar como narrar estes fatos para o mundo saber o que houve aqui, supondo que um dia saiamos desta agonia e que o mundo queira saber. Eu, que já não consigo enxergar bem, tenho os olhos permanentemente encobertos por um princípio de catarata, que eu já vivo num nevoeiro.Que fenômeno estranho, porém, permite que apenas esta cidade esteja à margem do mundo, sem notícias, mergulhada na névoa implacável que só faz crescer, sem um segundo sequer de trégua? Mesmo para mim, um narrador experimentado, o fato é sempre maior do que minha precária capacidade de descrevê-lo e de explicá-lo. Só me resta imaginar qual seria o desfecho de tudo isto, acaso fosse um romance.
            Sim, porque há de haver uma causa, uma razão, uma explicação, racional ou não, que, como tudo está, é difícil supor uma causa natural. O nevoeiro, por enquanto, é denso e uniforme, não parece ter lugar de origem, mas tenho a impressão de que poderíamos procurar alguma pista que nos levasse a um ponto qualquer, supondo que haja esta origem. Então, decidi empreender, por minha conta a risco, a busca deste improvável lugar. Tenho certeza de que ele existe e não estará longe. Apesar de minha pouca visão, pretendo ir ao encontro de alguém que me possa esclarecer o que se passa.
            Ah, sim, pode me chamar de Borges; sei que ficarei cego algum dia, não por causa do nevoeiro, para por causa de meu destino. Deus me deu os livros e a noite. Sei que devo continuar escrevendo esta história tanto quanto a natureza se cumpre em fazer-me cego, que nisto não estou sozinho, existem outros que me antecederam neste irônico jogo dos deuses. Homero e Milton são apenas velhos conhecidos do mesmo destino. E dizem ainda que somos Tirésias, somos pessoas que podem decifrar enigmas, traduzir oráculos. Nós, os cegos ilustres.
            Não pretendo ser ilustre, quero apenas saber de onde vem esta névoa, se é que vem de algum lugar. Quero saber o sentido de estar tudo entregue ao nevoeiro, e a cidade ter-se tornado um capítulo ocasional da literatura fantástica. Haverá em tudo isto em sentido oculto, uma razão suficiente?
            Se quiser saber rigorosamente o que se passa, preciso  sair, ir às ruas, visitar a praça onde boa parte do povo se concentra, ouvir o que se diz na prefeitura, a despeito de minha precária visão.
            Mais um vizinho de janela acaba de me assegurar que o nevoeiro se restringe a nossa cidade, que o sol brilha escandalosamente fora dos limites do município. Sabe-se também que as comunicações estão interrompidas e que o tempo parece ter-se congelado com o nevoeiro, por isso não se pode pedir ajuda a mais ninguém fora de nossa fronteira. Temos de contar conosco, com nossa possibilidade de descobrir.
            Vou às ruas tateando, para encontrar o centro deste mistério.  Se o encontrarmos, então poderemos saber do que se trata, pois, como aprendi há muito tempo, é preciso encontrar a origem, o princípio, o começo para não padecer da angústia de ser dispensável.