“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 21 de julho de 2012

Último capítulo


20
    (texto encontrado num velho baú , depois da morte estranha e anônima de seu autor, igualmente anônimo e cego)

            No Forte, no centro da sala-d’armas, um cômodo todo ele caiado, e as grossas paredes do século XVII, uma pequena esfera translúcida feria os olhos de todos nós com intolerável fulgor. A esfera recolhia-se dentro de um cilindro e reproduzia o desenho que servia de epitáfio ao túmulo de Arquimedes, com seu famoso teorema cujos termos anunciavam a razão matemática entre a superfície, o volume do cilindro e o da esfera: uma relação de 2/3. De longe, parecia estar imóvel, porém julguei que se movia sobre o próprio eixo. Também achei que este movimento era ilusão. O diâmetro do Aleph (chamemos assim à esfera, como lhe chamou Borges, o cego, estático no meio da sala, com Argos a seu lado) seria de 10 ou 12 centímetros, dentro do cilindro, porém, o espaço cósmico parecia caber inteiro dentro dela e era ali a origem do nevoeiro, da névoa, do ruço, da neblina e de todo este inusitado Graal.
            O espaço é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, pronunciou o cego, escandindo as palavras, cuidadosamente. Cada coisa era infinitas outras porque víamos o resumo de nosso pequeno mundo enevoado. Vimos o infinito mar e a aurora, vimos a tarde; vimos figuras humanas arrastando-se sob a cerração; vimos as largas avenidas silenciosas e a Praça da Matriz com seu relógio congelado; vimos o pálido disco solar inibido pelas nuvens e o cão Argos farejando alguma saída; vimos os sôfregos beijos entre Lívia e Rodrigo, com a ansiedade dos amantes des-esperados, a irritação dos governantes da cidade, impotentes, frente ao fantástico absurdo. E vimos padre Luis flutuando seu voo errático e as mais soberbas casas e edifícios, o que em segredo se elabora, o que foi pensado e temido, o sono rancoroso dos miseráveis, o absurdo original e seus mistérios, enfim, tudo o que o Poeta também viu em seu claro enigma, nós vimos, siderados, na antessala de Infinito branco vestida, noiva inconcreta.
            E surpreendeu-nos, desenhado na parede da sala, o Criptograma de Pompeia. Não saberemos quem ali o transcreveu, mas era em tudo semelhante ao mesmo desenho que se encontra numa coluna de uma antiga mansão na devastada cidade, depois que o Vesúvio a destruiu. Talvez uma analogia macabra entre o distante passado e o presente incompreensível, mas nós vimos, na parede, o criptograma, o mesmo que lá esteve e que desafiou as inteligências e a argúcia de tantos quantos pretenderam decifrá-lo, por seculares desafios, mas que nossa cidade, enevoada, reviveu não se sabe por astúcia de quem ou de quê. Ou de Quem ou de Quê.
            Eis o criptograma:
R O T A S
O P E R A
T E N E T
A R E P O
S A T O R

            Lido em todos os possíveis sentidos, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima, lá está a sentença, a espantosa teodiceia:
            ROTAS OPERA TENET AREPO (OPERA) SATOR, Deus mantém as obras do homem em sua mão desde o princípio das coisas.
            Suspeitamos então o sentido de nossa tragédia. Todos nós assentamos que Deus existe, sim, quem talvez não exista somos nós e que não nos resta outro destino senão a humilde reverência ao Criador que tudo sabe e tudo vê. O resto é silêncio e sofrimento, angústia e desespero.
            Fez-se escuridão de repente dentro da sala. Fomos tomados de um sono irresistível e sonhamos que aquela aurora embaçada de névoa inaugurava o dia que nunca acontecera e de algum modo celebrava a confusa verdade de que toda essa máquina do mundo nasceu no mesmo dia em que nascemos nós para o nevoeiro. O nevoeiro era a cifra de nossa incredulidade, o testemunho de nossa falta de futuro, de nossa descrença e de nossa vontade enfraquecida. O acontecimento denegado por nós deixava as marcas de nossa inautenticidade. Não compreendemos o que uma vez se chamou vida e destino, porque empobrecemos, carentes de uma gaia ciência que nos devolvesse o sentido de viver.
            E fomos tomados do profundo torpor e dormimos todos em meio à névoa, tocados talvez pela asa de um anjo; dormimos um sono inquieto, não obstante profundo, de talvez muitas horas, pois acordamos com os latidos de Argos, o cão, que já se retirava. A luz do sol em nossos rostos anunciava que ali nascia o dia sem névoa, o primeiro depois dos acontecimentos, não obstante resolvêssemos, sem uma palavra ser dita, considerar um dia para nunca mais lembrar. E este ficou sendo nosso contrato, nosso acordo. Nunca mais. Os relógios marcavam seis horas e quarenta e oito minutos, enquanto combinamos uma amnésia consentida e voluntária.
            Na luminosa manhã, sabíamos que toda cidade tem seus segredos, nós também temos os nossos. O segredo do dia que nunca existiu jamais será violado.
            Seguimos, cada um, seu caminho e sobre o nevoeiro, nunca mais nada se disse, embora o esquecimento seja uma forma de lembrança. Não obstante, cada um de nós leva dentro de si o seu próprio nevoeiro.
            De tudo o que restou, o rastro é o silêncio. Embora o que se vai aqui escrito seja sua primeira e única violação.
            Mas sempre um rastro de algo que um dia espantou nossa alegria, mas que nós lutamos para reavê-la. E conseguimos, mesmo custando nossa memória.

            Lecturis salutem

sábado, 14 de julho de 2012

19º capítulo


19                                   a melodia eSPALHOU-se por toda parte, tecida pelas vozes trêmulas dos cantores. Não tinha letra, como aqui se descreveu, era apenas um vacilante solfejar, uma melodia, um lamento murmurado de gargantas apertadas, na esperança de que a névoa, afinal, se dissipasse por artes da cantoria ou da vibração de vozes. Argos, o cão, pôs-se em alerta, erguendo as orelhas pontiagudas, ouvindo outras melopeias que não podiam os humanos perceber. Não se pode garantir se melhor ou pior. Rodrigo abraçou Lívia pelas costas e ela deitou-lhe nos ombros os levíssimos cabelos louros de sua delicada cabeça, respirando fundo, imaginando; quem sabe, uma longa e emocionada despedida.  Um breve roçar de seus lábios no pescoço de Lívia que se encolheu como uma criança medrosa lembrou que a vida ainda pulsava.
José Inácio e seu Antonio tentavam seguir o murmúrio das vozes, mesmo sem conhecer a melodia, mas era só para estarem solidários com a dor dos outros. As pessoas buscavam abraçar-se ou permanecerem de mãos dadas, enquanto a vibração de suas vozes poderia romper o nevoeiro, como se cristal fosse. Vaga esperança no meio do desespero, inútil exercício, talvez.
            E assim permaneceram por tempo incontável, porque contá-lo não seria possível sem o tempo, ouvindo as ondas explodindo na praia em harmonia com os cânticos solfejados e as orações sussurradas, cheios de temor. A melodia embalava o marulho das ondas.
            Eis senão quando, Argos, o cão, emite um latido de alerta, pois que, do meio do nevoeiro, surge Padre Luis, seguido das beatas e suas vozes estridentes, interrompendo o silêncio e a reverência do ritual. Entoavam, com suas vozes agudas, os hinos religiosos, enquanto o padre gritava com sua voz esganiçada, em tom de flautim: Arrependei-vos, arrependei-vos antes que seja tarde. A mão de Deus será vingadora. Abram seus corações que este é o fim dos tempos.
            O povo aconchegou-se, as pessoas abraçarem-se ainda mais fortemente; com medo do que fosse suceder. Lívia e Rodrigo cingiram os corpos como se este gesto, tão comum a dois amantes, pudesse significar a salvação da espécie. Juntos, quem sabe, poderiam sobreviver ao mistério, superar o medo e, quem sabe ainda mais, pudessem sentir-se comprometidos com o dia seguinte, podiam repetir o casal do gênesis e recomeçar o gênero humano, mesmo que fosse para também repetir o equívoco de Deus. Até os sons abafados desta cidade secreta devem ser outras tantas álgebras e rigorosa linguagem que provavelmente têm suas chaves correspondentes, suas duras gramáticas e sua fluida sintaxe, e assim este nevoeiro, que a todos atormenta, pode ser o espelho de coisas inexplicáveis, pode ser um texto ainda não decifrado. A decifração do enigma branco não parecia estar ao alcance da inteligência daquelas pessoas, nem mesmo do padre Luis, que guiava o grupo de beatas em direção ao Forte, não se sabia por que razão,  se existe razão nos lunáticos, especulação sobejamente inútil em face dos acontecimentos aqui narrados.
            Quando indagado, padre Luis arregalava mais ainda os olhos injetados, anunciando, com sua voz profética, que o mistério está no forte, é de lá que vem a neblina, eu vi, eu vi a revelação. E as beatas seguiam-no mesmerizadas, e todo o público também resolveu acompanhá-los;  afinal, no meio de tanta dúvida, tanto medo e incerteza, supor uma explicação para o fenômeno parecia fazer sentido. Portanto, em fila, caminhotateante no meio da névoa, aquele grupo bizarro seguia o padre que, em transe, entoava cantos religiosos em latim. O povo não os compreendia, mas isto não tinha a menor importância, pois se entendia que a jornada em direção ao Forte poderia ser a solução do mistério na língua da Bíblia. E isto merecia respeito e mesmo comovida reverência.
            Ainda era dia (isso se deduzia da precária claridade), mas não se sabia quanto faltava para o entardecer e a consequente escuridão que haveria de suceder com a noite. Era a escuridão da noite o maior de todos os temores, porque todos seriam atirados numa espécie de desamparo e de cegueira maior e involuntária. A névoa, associada à escuridão, ampliava o temor de que algo nefasto estivesse para acontecer. Talvez isto explique porque aquela pequena multidão se dispunha a seguir o padre em direção ao suposto fim do enigma.
            Embora descrentes, Lívia e Rodrigo seguiam a procissão, junto com Argos, o cão, que parecia estranhamente confiante e seguro farejando a rota que seguiam. Argos, o cão, avançava a alguns metros na frente de casal e de vez em quando tornava o focinho como a assegurar o acerto da escolha. Sim, era como diziam seus olhos argutos, podem seguir-me que eu já sei para onde vamos, confiem. O cão trotava seguro, quase ao lado de Padre Luis, um e outro pareciam saber o que faziam.
            Pois este caminhar não incerto apontava para a construção branca, sólida, plantada no alto do rochedo. O Forte, já de quatro séculos, garantiu a integridade da cidade, no tempo em que os piratas franceses e holandeses por aqui passaram, em busca do pau-brasil. Era uma construção imponente que ainda guardava os sinais de sua petulância orgulhosa. Dali é que vinham os tiros de canhão, impedindo que a cidade fosse vilipendiada pelas mãos impuras dos corsários e que suas mulheres conhecessem a ignomínia de um estupro. A seus pés, pousaram índios e brancos, comerciando o permitido e o proibido; sob a proteção de sua sombra e era sob o signo de sua imponência que se podia dormir em paz. Enquanto dele se precisou, enquanto ao Forte pertenceu a tarefa de proteger as pessoas e as casas, as ruas e os palácios, foi ele moendo o tempo, deixando passar os séculos por suas paredes brancas e aos poucos foi perdendo importância, porque já não se invadiam mais as cidades pelo mar, nem por piratas, mas por outras formas menos rudes de invadir, nas quais não se viam armas, mas a riqueza e irreverência petulante dos turistas para os quais não se necessita de um Forte.
            Por isso, hoje, não passa de uma memória longínqua de uma história de que ninguém se lembra mais. A edificação, sob os cuidados da prefeitura, é apenas um lugar exótico que anônimos visitantes ocupam sem se importarem do que fazem ou desfazem. Onde à noite, por exemplo, fogosos casais exercitaram uns nos outros a mais antiga das coreografias, a do prazer. As paredes, outrora alvas, estão hoje desenhadas por vocábulos incompreensíveis, nomes e lugares distantes, de fulano que ama fulana ou de fulano que esteve aqui em certa data. Não se pensa que ali passeiam fantasmas de outras vidas, contando a longa história de uma conquista, e que deviam merecer mais respeito.
            Quem se importa com as vidas que circulam por suas paredes grossas e dos velhos soldados, que passeiam por seu pátio, vigiando, fantasmas que são, impenitentes, o desprezo do tempo?
            Lívia e Rodrigo, também José Inácio e seu Antonio, tomaram o mesmo caminho em direção ao penhasco em que descansava, já por quatro séculos, o Forte. Ah, sim, lá também estava Borges, ao lado de Argos, o cão, que agora  nos guiava pelas entranhas do caminho. Ele, com sua bengala de cego, tenteava o passo em direção ao edifício, tendo surgido do fundo de alguma memória funesta há muito dispersa nas lembranças difusas daqueles insólitos peregrinos. Argos, o cão, era o guia.
            Posso dizer que entramos todos nós na sala-d’armas , que é onde se supunha estar a solução do mistério.

sábado, 7 de julho de 2012

18º capítulo


18  
            não se falou no mar nesta história que já vai ao final sem que saibamos exatamente do que se trata. E como se pôde esquecer o mar numa cidade banhada por ele, banhada das suas águas clarazuis? Ou quando o sol brilhava -- ontem mesmo brilhava o sol -- , e as areias reverberavam como espelho à luz intensa deste mesmo sol? Pois o mar continua lá, mas somente seu ruído rouco, enfurecido, pois as ondas explodem na praia, imensos caixotes, ruidosa goela primordial. Não se pode ver o horizonte, isto está evidente. A neblina cerrou-nos a paisagem das águas infinitas como se fosse um cortinado branco, opaco. A névoa dança de um lado para o outro, reverbera o suposto sol que brilha por detrás dela; e só se vê a massa meio cinzenta das águas que salgadas ainda são, mas não são mais os brilhantes diamantes de azul vestidos ou a líquida esmeralda dos românticos romances.
            O povo sai de dentro da névoa e se ajunta bem na frente da praia, onde se reuniam lembrando os domingos ensolarados, em que festejavam o fim de semana, com os sambas, as cervejas, os corpos expostos aos prazeres do sol e dos pecados, ao lado dos ricos turistas. Mas não hoje, mas não agora. A densa cerração encolheu os horizontes, a linha do fim do mundo já não mais existe, o que existe é uma parede esbranquiçada, próxima aos olhares de cada um, como se dissesse que o mundo acaba ali e o que vem depois é uma paisagem rasa, um plano limitado que devora todo aquele que ousar ultrapassar a parede. Não se pode mais compreender o infinito mar e seus mistérios, o mar acaba logo ali, ao alcance de todos os olhos. Já não se pode dizer que  é infinito o mar.
            Trágico é o silêncio das bocas fechadas, dos corações aos pulos, das mãos cerradas em outras mãos, o gosto ruim do medo, a saliva e a vontade de ceder à pressa que chega por todos os lados, o medo. Ninguém se atreve, nem mesmo José Inácio, por todos tido como hábil pescador, é capaz de pronunciar uma única sílaba. Talvez não somente por medo, mas por uma cautelosa reverência pelo absurdo cenário que se pode vislumbrar.
            O longo mar salgado que de Portugal roubou as lágrimas, não propriamente de Portugal, mas de suas mulheres, ruge feroz. Seu Antonio disto sabia, sem precisar ter lido em nenhum livro, mas sabia-o de experiência feita, que o salgado deste mar e de todos os outros que porventura existem ou existirão, foram das lágrimas das mulheres  portuguesas, de suas lágrimas que souberam assim a gosto de mar. E o cheiro agridoce da maresia garantindo que ali estava o oceano, mesmo que fôssemos todos cegos, ou de nascença ou por causa do ruço, e como o cão que resolveu permanecer ao lado das pessoas, como fiel guardião de não se sabe o quê. O cão que se chama “Argos”, cujo nome já apareceu em outras circunstâncias marítimas e que deve ser parente daquele outro, quando um inteiro continente se partiu e uma jangada de pedra repetiu os assombros, quase como este que estamos vendo. Lívia, todos mais, e o cão recolhem-se na multidão.
            E nesta calçada da praia pressentida e quase vislumbrada, o povo se aglomera, espantados olhares, narizes ao alto, ofegantes, guarda a respiração como preservasse o ar impregnado de maresia, de cheiro do mar, como se guarda o cheiro do sexo da mulher com quem nos deitamos quando bate o amor em nossa porta, da vontade ou desejo, conforme for, e deixamo-nos afogar, náufragos que somos, do pecado mais querido e mais praticado. E também dos homens que se afogam nos femininos quereres, e as mulheres que sabem quanto valem e podem, por saber esperar mais do que eles, porque já nasceram esperando.

            Quem sem lembra quando e como esse povo começou a cantar? Não era uma melodia festiva e alegre como aquelas que saem dos aparelhos de som que as barracas de praia desfilam, nem eram as músicas estridentes que dos batuques saiam e que tanto irritam os refinados veranistas que por engano escolheram a praia errada. Não. Era antes uma melodia profundamente melancólica, um arrastar de vozes trêmulas, cautelosas, sem muita combinação. Não tinha letra, era um solfejar abemolado, parecendo um mantra, na talvez esperança de que assim se dispersasse a névoa e de novo pudessem eles ter de volta o infinito mar azul, lâmina ensolarada, líquido papiro ou esmeralda, lugar de poemas e emblemas de felicidade.
            Mas não. A névoa recobria ainda mais os olhos e choraram amargas lágrimas de sal e mar, enquanto a melodia se misturava com a névoa de modo que não se sabia o que era mar, o que era névoa, qual coisa eram todos.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

17º capítulo


            17    o rosto que LÍVIA percebeu no meio da multidão não lhe pareceu desconhecido. A névoa intensa não lhe permitia saber se era Rodrigo, por isso teve de tocá-lo cuidadosamente para delinear seus traços, traços que bem conhecia. Era sim Rodrigo que lhe tomou as mãos como se faz com os náufragos. Lívia aproximou-se mais dele, abraçou-o com suavidade e disse que estava com medo. Rodrigo perguntou-lhe como conseguira sair de casa e Lívia contou-lhe a história das últimas lembranças, de como saíra de casa tateando pelas ruas, de como os automóveis passavam perigosamente por ela, e de como encontrara um cão que chamara Argos e mais os dois homens que com ela estavam: o pescador e o velho português. Rodrigo, por sua vez, contou-lhe dificuldades semelhantes, mas que resolvera vir até a Praça da Matriz porque ali havia alguém de saber o que fazer. Desejava encontrá-la para dividirem juntos o pão da intimidade e seus temores. Na prefeitura, souberam, por ouvir dizer, que ninguém tinha a menor ideia de como agir. O fato de a cidade estar fechada para o mundo e o tempo ter parado era, para ele, motivo de quase pavor. Nos poucos contatos que tivera com pessoas que se aventuravam a sair de casa, sentiu que o pânico já era evidente. Muitas casas comerciais foram invadidas, subtraiam-se mercadorias porta a fora, embora o esforço necessário para carregar as coisas roubadas exigisse do invasor alguma força física e não pouca agilidade. Além do peso dos objetos, a respiração tornara-se precária e o larápio quase desmaiava, por falta de ar. Talvez por esta circunstância, o vandalismo não fosse tão intenso, porém era metódico. Embora sempre se pudesse supor a inutilidade do roubo, se não se vislumbrava futuro para a cidade, eles aconteciam. Afinal, quem resiste ao apelo da propriedade, mesmo ilegal e indébita?
            Lívia apertou seu corpo contra o de Rodrigo e lhe disse que estava com medo. O cão Argos aproximou-se em alerta, como se lhes garantisse a proteção de seu território. Os outros dois homens, percebendo a intimidade da conversa, afastaram-se um pouco, mas foi José Inácio quem rompeu o silêncio momentâneo. E agora, o que a gente faz? Devemos esperar, Rodrigo disse enquanto acariciava o rosto tenso de Lívia, devemos esperar até ver se o nevoeiro passa e as coisas voltam a seu lugar. Não parecia assim a seu Antonio e seu espírito prático. Opinou que deviam tentar encontrar alguma explicação para esta situação inexplicável. Não podia uma cidade desaparecer sob um nevoeiro, nem o tempo parar, enquanto o resto do mundo segue sua vida normal. As notícias diziam que o sol brilhava logo nos limites da cidade e que não se podia passar das nuvens ao sol, porque o nevoeiro não permitia. Quem tentasse, como já antes outros tentaram, ficava paralisado e sem respiração. Era como se tivessem virado peixes que só conseguem viver sob o ruço, respirando aquela nuvem ácida e espessa como em um aquário de neblina.
            Não se pode viver assim... Isto não é coisa que se possa aceitar. A verve combativa de seu Antonio não se conformava com a situação. Mas foi Rodrigo quem sugeriu que procurassem outras pessoas, algumas ali da praça mesmo, para saber como agir. Ou devíamos esperar que alguém da prefeitura dissesse alguma coisa, pois estavam em contato com a base militar e eles lá devem saber o que está acontecendo. José Inácio concordou e resolveram aproximar-se das outras figuras pálidas que permaneciam na praça, envoltas no ruço.
            São próprias do desespero a resignação e a fé. Muitos daqueles homens e mulheres que se dissolviam na cerração implacável sentiam a mesma dor. Sabia-se que era dia apenas porque um tímido disco solar esforçava-se por iluminar a vida na cidade, por esta razão sabia-se que não era noite e sim dia, mas não se sabia que momento do dia era aquele. O temor aproximava-os de modo que se tocavam, como a supor uma fraternidade nova, imprevista. Sabiam que o destino lhes havia pregado uma peça e, como nessas horas, havia de se buscar culpados; o problema, no entanto, é que, para tamanho absurdo, nem os culpados são possíveis. Pelo menos um consenso começava a surgir daquela assembleia fantasmagórica: era preciso encontrar a origem do nevoeiro, pois só podia vir de algum lugar na cidade; se procurassem com calma e insistência, é possível que se pudesse saber onde começava tudo isto.
            A filosofia dos que assim argumentavam supunha a hipótese de que todo o começo já é um fim, e que em toda origem já lá está sua escatologia. Um princípio que aos poucos ia tomando conta das mentes, mitigando-lhes o pavor e o pânico, embora eles nada soubessem dessas coisas complicadas.
            Em meio a estas dúvidas, perceberam que o cão farejava o ar, andava até a esquina da Praça e olhava para o grupo, como se convidasse a segui-lo. Fez isto várias vezes, até que Lívia percebeu e disse olha o cão,ele está pedindo para a gente ir com ele.
            São os cães fiéis intérpretes do que incomoda seus donos, ou quem eles escolhem para estar ao pé. Já outro cão – Constante – em outra história muito mais profunda e bela do que esta, conseguiu guiar seus donos. A alma do animal é feita desta necessidade, de ser solidários, dando ao homem lições surpreendentes, embora óbvias. Mas o que interessa, neste momento, é que Argos liderava uma longa fila de corpos em procissão, seguindo um animal irracional, já que a racionalidade humana nada podia oferecer para a resolução daquele mistério.
            Quem diria que a irracionalidade de um animal pudesse valer mais do que nossa vã racionalidade?