4
não chegavam os ônibus à rodoviária densamente enevoada. Os funcionários da Empresa
Intermunicipal de Transporte Coletivo afixavam avisos de atrasos, segundo
relatos que recebiam dos motoristas, comunicando, por precários bilhetes e
esparsos telefonemas, quando ainda funcionavam os aparelhos, a impossibilidade
de conduzirem seus veículos pela singela razão de que não se enxergavam dois
dedos adiante do nariz. Os contatos foram escasseando e os aparelhos celulares
emitiam um ruído gasto de madeira crepitante. Desnecessário dizer que também os
computadores se tornaram inúteis: a internet caiu; também os telefones comuns
não se comunicavam com quem quer que fosse, nem dentro nem fora da cidade. Por
volta das sete horas da manhã, os pontos de ônibus abrigavam centenas de vultos
esmaecidos pelo branco da névoa. Viajantes insones, nos pontos dos ônibus,
alarmavam-se com a ausência de notícias e de condução. O chefe de operações
concluiu que a cidade estava ilhada e que a causa era o ruço.
Enquanto isso, uma bizarra procissão
de vultos humanos irrompia pelas ruas, em meio à fumaça branca e leitosa em
demanda de seus postos de trabalho. Uma fila interminável de homens e de
mulheres procurava chegar aos empregos, apesar de tudo. O patrão poderia
descontar de seus miseráveis salários o dia perdido, apesar da cerração. É a
sina dos humilhados da vida, pagar com o infortúnio pessoal o que lhes manda a
natureza, mesmo quando a desgraça é coletiva, porque, neste mundo que é nosso –
ou deveria ser – o lucro é sagrado e em Deus se confiam as moedas e suas
esfinges, e mesmo se agradece quando o caos se apresenta.
Diga-se, no entanto, que se tratava
de um caos silencioso. Apesar de temerosos, os homens e mulheres seguiam
resignadamente, sem nada dizerem. Era como se o nevoeiro fosse familiar,
natural, tratando-se de um pequeno acidente que, no fim das contas,
desapareceria sem deixar vestígios. De tanto ver desgraças e com elas sofrer,
essa gente foi se tornando insensível e sem esperança.
As lâmpadas das ruas não estavam
todas ainda acesas; nos poucos postes com iluminação, a luz se refratava na
neblina, e se tornava pálida e difusa; um bruxuleio incapaz de iluminar
suficientemente qualquer coisa, capaz apenas de indicar o caminho por onde se
devia seguir, caso alguém resolvesse arriscar-se a ir mais longe. As pessoas tentavam
chegar aos locais de trabalho em tempo e hora previstos. A marcha prosseguia
formando uma longa fila de espectros, lentamente, para não tropeçar no asfalto,
em fila indiana, só faltando assentar com as mãos os ombros de quem ia à
frente. Um desavisado observador poderia supor tratar-se de um bando de
festivos colrgiais, seguindo para uma inocente sala de aula, onde lhes
esperavam dedicados professores, ocultos pela névoa pálida, ou quem sabe uma
fila de cegos em demanda de certo Tirésias que sabia ler os sinais, por suposto
de que as neblinas fossem sinais e que houvesse ali algum Tirésias ressuscitado
de tão longes terras e não menos estranhos mitos. Afinal, esse Tirésias, por
ser cego, é que pode saber a verdade, mas, por desgraça, não costuma dizer ao
que veio, porque falava uma língua indecifrável para ouvidos meramente humanos.
A inusitada fila serpenteava pela
beirada das calçadas até que encontrava um ponto de ônibus. Ali, todos se
detinham e se agrupavam, comentando, em baixa voz, a situação em que se
achavam. Mas, por enquanto, nenhum ônibus apareceu e tinha-se a impressão de
que, naquele dia, nenhuma condução haveria para levá-los ao trabalho.
De repente, por toda a cidade,
desenhou-se um vasto cenário de corpos deslizantes no meio da brancura das
nuvens, silenciosamente, resignadamente, em razão do dia incomum, procurando
chegar ao trabalho, mesmo sem os ônibus, mas com a força do hábito ou do medo
de perder o emprego.
E assim seguiam os autômatos
humanos, em longa procissão, cautelosamente, para a jornada de trabalho, ao
invés da jornada dos desejos, porque, por desejo mesmo, era de se permanecer em
casa, ao abrigo da proteção de seus lares, esperando que alguém lhes
desvendasse solução para o estranho enigma que os surpreendera.
Mas o medo do desemprego ou da falta
ao trabalho ainda impelia-os a correrem todos os riscos, mesmo o de enfrentar
uma situação incompreensível. Bravo povo esse nosso!
Alguns automóveis passavam devagar,
com os vidros fechados, e os motoristas duplicando a atenção. Os sinais de
trânsito não funcionavam de modo que, a qualquer momento, poderia haver algum
acidente. Não havia policiais a orientar o trânsito, mesmo sendo este pouco e
raro, e aqueles, idem.
As bicicletas, símbolo do transporte
urbano da cidade, já que eram milhares, também desapareceram, como
desapareceram as conversas alegres de seus condutores, o canto de louvor de
alguns ciclistas, enquanto pedalavam, e a festiva comemoração de tantos outros
que falavam de seus times de futebol e assim a jornada ficava mais alegre
naquela procissão sobre duas rodas. Mas não era de desejos a jornada, como já
aqui foi dito.
A estranha manhã em que a cidade
parou foi aos poucos se tornando um grande mistério. A névoa opaca que deixava
os olhos doloridos e queimando já não era desconhecida de ninguém. Já quase
todos os moradores perceberam que algo de inusitado ocorrera com a cidade. Era
a hora e a vez de alguma explicação.
Era, porém, bela a paisagem,
sobretudo quando se contemplava o mar, despossuído de horizonte, porque a névoa
formava uma imensa cortina, como acontece em um teatro antes de a peça começar.
Se a cortina se abrisse, que drama
contaria?Ou que tragédia?