“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 31 de março de 2012

4º capítulo


            4
    não chegavam os ônibus à rodoviária densamente enevoada. Os funcionários da Empresa Intermunicipal de Transporte Coletivo afixavam avisos de atrasos, segundo relatos que recebiam dos motoristas, comunicando, por precários bilhetes e esparsos telefonemas, quando ainda funcionavam os aparelhos, a impossibilidade de conduzirem seus veículos pela singela razão de que não se enxergavam dois dedos adiante do nariz. Os contatos foram escasseando e os aparelhos celulares emitiam um ruído gasto de madeira crepitante. Desnecessário dizer que também os computadores se tornaram inúteis: a internet caiu; também os telefones comuns não se comunicavam com quem quer que fosse, nem dentro nem fora da cidade. Por volta das sete horas da manhã, os pontos de ônibus abrigavam centenas de vultos esmaecidos pelo branco da névoa. Viajantes insones, nos pontos dos ônibus, alarmavam-se com a ausência de notícias e de condução. O chefe de operações concluiu que a cidade estava ilhada e que a causa era o ruço.
            Enquanto isso, uma bizarra procissão de vultos humanos irrompia pelas ruas, em meio à fumaça branca e leitosa em demanda de seus postos de trabalho. Uma fila interminável de homens e de mulheres procurava chegar aos empregos, apesar de tudo. O patrão poderia descontar de seus miseráveis salários o dia perdido, apesar da cerração. É a sina dos humilhados da vida, pagar com o infortúnio pessoal o que lhes manda a natureza, mesmo quando a desgraça é coletiva, porque, neste mundo que é nosso – ou deveria ser – o lucro é sagrado e em Deus se confiam as moedas e suas esfinges, e mesmo se agradece quando o caos se apresenta.
            Diga-se, no entanto, que se tratava de um caos silencioso. Apesar de temerosos, os homens e mulheres seguiam resignadamente, sem nada dizerem. Era como se o nevoeiro fosse familiar, natural, tratando-se de um pequeno acidente que, no fim das contas, desapareceria sem deixar vestígios. De tanto ver desgraças e com elas sofrer, essa gente foi se tornando insensível e sem esperança.
            As lâmpadas das ruas não estavam todas ainda acesas; nos poucos postes com iluminação, a luz se refratava na neblina, e se tornava pálida e difusa; um bruxuleio incapaz de iluminar suficientemente qualquer coisa, capaz apenas de indicar o caminho por onde se devia seguir, caso alguém resolvesse arriscar-se a ir mais longe. As pessoas tentavam chegar aos locais de trabalho em tempo e hora previstos. A marcha prosseguia formando uma longa fila de espectros, lentamente, para não tropeçar no asfalto, em fila indiana, só faltando assentar com as mãos os ombros de quem ia à frente. Um desavisado observador poderia supor tratar-se de um bando de festivos colrgiais, seguindo para uma inocente sala de aula, onde lhes esperavam dedicados professores, ocultos pela névoa pálida, ou quem sabe uma fila de cegos em demanda de certo Tirésias que sabia ler os sinais, por suposto de que as neblinas fossem sinais e que houvesse ali algum Tirésias ressuscitado de tão longes terras e não menos estranhos mitos. Afinal, esse Tirésias, por ser cego, é que pode saber a verdade, mas, por desgraça, não costuma dizer ao que veio, porque falava uma língua indecifrável para ouvidos meramente humanos.
            A inusitada fila serpenteava pela beirada das calçadas até que encontrava um ponto de ônibus. Ali, todos se detinham e se agrupavam, comentando, em baixa voz, a situação em que se achavam. Mas, por enquanto, nenhum ônibus apareceu e tinha-se a impressão de que, naquele dia, nenhuma condução haveria para levá-los ao trabalho.
            De repente, por toda a cidade, desenhou-se um vasto cenário de corpos deslizantes no meio da brancura das nuvens, silenciosamente, resignadamente, em razão do dia incomum, procurando chegar ao trabalho, mesmo sem os ônibus, mas com a força do hábito ou do medo de perder o emprego.
            E assim seguiam os autômatos humanos, em longa procissão, cautelosamente, para a jornada de trabalho, ao invés da jornada dos desejos, porque, por desejo mesmo, era de se permanecer em casa, ao abrigo da proteção de seus lares, esperando que alguém lhes desvendasse solução para o estranho enigma que os surpreendera.
            Mas o medo do desemprego ou da falta ao trabalho ainda impelia-os a correrem todos os riscos, mesmo o de enfrentar uma situação incompreensível. Bravo povo esse nosso!
            Alguns automóveis passavam devagar, com os vidros fechados, e os motoristas duplicando a atenção. Os sinais de trânsito não funcionavam de modo que, a qualquer momento, poderia haver algum acidente. Não havia policiais a orientar o trânsito, mesmo sendo este pouco e raro, e aqueles, idem.
            As bicicletas, símbolo do transporte urbano da cidade, já que eram milhares, também desapareceram, como desapareceram as conversas alegres de seus condutores, o canto de louvor de alguns ciclistas, enquanto pedalavam, e a festiva comemoração de tantos outros que falavam de seus times de futebol e assim a jornada ficava mais alegre naquela procissão sobre duas rodas. Mas não era de desejos a jornada, como já aqui foi dito.
            A estranha manhã em que a cidade parou foi aos poucos se tornando um grande mistério. A névoa opaca que deixava os olhos doloridos e queimando já não era desconhecida de ninguém. Já quase todos os moradores perceberam que algo de inusitado ocorrera com a cidade. Era a hora e a vez de alguma explicação.
            Era, porém, bela a paisagem, sobretudo quando se contemplava o mar, despossuído de horizonte, porque a névoa formava uma imensa cortina, como acontece em um teatro antes de a peça começar.
            Se a cortina se abrisse, que drama contaria?Ou que tragédia?

sábado, 24 de março de 2012

3º capítulo


3    A preguiça nos resguarda da culpa que porventura padecemos, a desculpa pode ser o frio. Nessa cidade, não costuma fazer frio, mas faz um tanto agora. O sol ainda não desenhou sua luminosidade nas frinchas da janela do quarto. O despertador, com as horas vencidas, goteja os minutos derramados porcimadesobre a mesa de cabeceira, por onde escoam as horas, pelo vão da porta do quarto enquanto ainda escurece e a manhã teima em não surgir. Levantar, ir ao banheiro, trocar de roupa para a ginástica. Depressa para esquentar o corpo. Coragem para começar o dia, ruminando o sono sobrante da madrugada., é Lívia que se prepara para outro dia depois da noite óbvia. Silencia o apartamento, sem o rumor estridente da louça, sem o cheiro morno do café da manhã; como todas as manhãs. Sons de um cuidado com ela e o apartamento silencioso é enorme e preguiçoso, parece não produzir vida, tanto o silêncio. Lívia olha para o relógio: atrasada de novo, mas é por causa do frio. A mãe ainda não pôs a mesa da manhã. Sem o café, e os ruídos; as luzes na cozinha – frias – sumiram com todas as coisas íntimas, tudo está esquecido e dormente. Lívia e a mãe, sozinhas, vivendo juntas desde a separação recente. A mãe viúva,cuida de Lívia como jardineiros cuidam de plantas, porque sabem as mães, e somente elas, estarem ao pé de suas filhas sem nada exigir, sempre dispostas ao cuidado de quando elas precisam, e Lívia precisava, muito. .E nem é preciso que algo se diga que, neste universo particular do amor, as palavras são sempre dispiciendas. Reunir forças, levantar, dizer pai-nosso que estais no céu (não dizer: perdoai nossas dívidas,trocar por ofensas, erros do catecismo, inaceitáveis na moderna teologia!). Vestir a roupa da ginástica e caminhar meia hora na praia. A friagem, o inverno, bem na hora. Lívia afinal se ergue e, lentamente, afasta as cortinas da janela, olha o mar e o luzeiro-sol-nascente que devia tingir de vermelho todo o quarto, porém não está, não há sol, que não avermelhou; o quente do sol que não consolou os sobressaltos da noite. Um dia sem aurora, como pode isto ser?
            Ah, Lívia, tão bonita, vestida com uma camisola de lã, curta, e as migalhas do sono pendendo nos olhos verdes, verdes  como são as cores do belo corpo de Lívia...    Ah!, Lívia, ele te beijou, não foi? Te beijou de novo. Depois da aula da faculdade, trouxe você até a porta do prédio: Lívia, eu te amo. Não, ama nada, você só me quer. Quero, claro, mas te quero sempre. E um beijo furioso, de língua, na boca semicerrada de recusa, ou pudor, (seria pudor?). Amanhã a gente se fala, agora não. Vou subir. Não foi dito com a insípida frieza de uma frase, mas com uma sofreguidão de mãos, uns requebros na cintura e uma provocação de pernas e braços, um jeito nos cabelos, uns olhos de promessas, uma medida pressa estudada. Uma recusa de lábios de promessa, um fulgor no rosto. Ela não sentiu mais do que suas carnes dormentes pudessem traduzir. Não lhe tremeram as pernas, nem lá nos embaixos abriu-se flor nenhuma, porém alguém estivera ali: moço rico, bonito,de família de posses.Quantos acidentes impedem o amor de florescer, para quem acredita nessas coisas, não é Lívia? Ainda o outro está presente, no cheiro, na força dos braços, ainda o outro está em suas vontades dela, ainda é quem acende o gozo, ferve a pele, enlouquece a alma. E outros pensamentos intrusos nos dizem que a vida é curta, que tudo pode enquanto se vive. Isto que lateja nos vazios é a força do Amor e da vida.
Lembra Lívia, a mãe que dizia: já não és mais uma criança e estás sozinha, sem marido, sem segurança, Lívia, sem conforto, sem fortuna. Isso de amores, a vida põe e dispõe...Ah! Lá embaixo estás morta, querida. Lá embaixo anda a memória do outro, que se foi numa madrugada infindável. Quem abrirá, com dedos antigos, outra vez, a rosa azul desse teu ventre encerrado? Será possível colher outras rosas? Tua roseira morreu, Lívia, ainda em flor? Flor se corola, amargo exercício de negar, isto é tu, Lívia.
Depois do beijo, a rápida fuga, vertiginosa Lívia, linda, lindacobiçada. Este corpo há de ser um pasto de prazeres, um prêmio, uma festa para moço rico, mas também a salvaguarda para os dias difíceis. Decide, mulher: no comércio do mundo não se pode pensar em culpas e pecados. O amor se foi com o outro, e tudo murchou, o filho perdido também murchou, murchou teu útero, secou tua alma, mas a vida recomeça na urgência dos dias e seus presumidos pecados.
            Deves aceitar este nada ínfimo ou deves arriscar novos amores? São dilemas, Lívia, são dilemas das mulheres que ainda aprendem a amar por si mesmas, e não ser uma boneca de um homem que dela faz uso e desuso e fruto ocasional.

            A hora arrastava, (atrasada de novo), trabalho começando às sete... Foi preciso cancelar a caminhada na praia. Agitou-se num sobressalto; nervosa, escancarou as cortinas: a paisagem branca sob a névoa leitosa, a praia já não havia, nem o mar; do velho Forte, podia-se ver apenas a difusa silhueta. Deus do céu, o que houve? O apartamento em demorado silêncio, o café (onde o cheiro?) os ruídos, a louça, as estridências, a claridade obscura da manhã, onde estavam? O relógio aponta seis horas e quarenta e oito minutos. Lívia está atrasada, tudo está parado, o tempo congelado, as ruas caladas e o medo côncavo do dia...
            Lívia gritou como se a solidão branca na manhã nebulosa fosse o começo de um enredo sem o consolo dos sonhos despertados e no teto do quarto se estampasse um imenso interrogante:
            Mãe?!
            A mãe não ouviu, talvez estivesse ainda dormindo. Lívia estava só, olhando a paisagem branca pela janela. De repente, o apartamento pareceu imenso, vastíssimo como o mar. As paredes eram estranhas, o teto também, os ruídos matinais desapareceram e um outro mundo começou, como uma fruta não escapa ao destino de ter sido semente. Um outro mundo, pálido e silencioso, que não se pode compartilhar porque tudo nele é grande demais, lento demais, frio demais.
            Havia o abandono e a certeza de estar só; o primeiro mortal sobre a terra; o primeiro som de alguma palavra, a palavra que lhe poderia retribuir o sentido desta insólita manhã:
            Mãe???
            O mundo não respondeu, a rua não respondeu, não responderam as gralhas que, todas as manhãs, açoitavam as janelas com seus gritos intermitentes. Não veio a nesga de sol, a mesma que iluminava a mesa de cabeceira e feria-lhe os olhos, anunciando a brevidade da manhã naquele começo de primavera.
            Não era mais seu mundo familiar. Os móveis, as cortinas, a cama desmanchada, o relógio silencioso perderam seu poder de referência e já não significavam mais nada. O quarto era estranho, as portas se abriam para algum abismo, a sala na semi-escuridão dava ao ambiente um enigmático tom de mistério.
            Nem a nesga de mar, entrevista entre os prédios em frente, aparecia. Antes, era uma massa branca de névoa úmida a bailar suavemente, em surdo balé silencioso. Lívia não sabia onde estava, tudo perdera a referência no meio do nada esbranquiçado.
            Ainda tateando, Lívia procurou caminhar um pouco pelo quarto. Cobriu com inútil pudor um pedaço de seio que explodia pelo rasgo da camisola, tocou-o delicadamente, num gesto de maternal e inconsciente cuidado, longe de invisíveis olhares. Mas puro gesto, não havia criança a ser amamentada, só nos sonhos, só nos sonhos de Lívia, só na dor de ter-lhe sido negado o milagre de ser mãe.
            A vertigem melhorou um pouco depois que ela caminhou pelo quarto. Sentiu-se um tanto mais disposta, as faces um pouco mais coradas. Lentamente, pôde resumir o dia anterior e a noite. Pôde entender onde estava, mesmo sem os ruídos da manhã. Mas alguma coisa muito estranha acontecera ao longo da madrugada.
            Respirou fundo, ergueu o corpo e, abrindo a porta do quarto pôde, finalmente, pronunciar em voz alta como houvesse saído de um pesadelo.
            Mãe!!??

sábado, 17 de março de 2012

2º capitulo

2
     PODEM CHAMAR DE jOSÉ inácio QUE saiu de casa cedo, bem mais cedo que de seu comum hábito, como não usava fazer havia tantos anos. O fatigado pescador de pele áspera e dura, ao caminhar, bem estranhou a névoa. Sabia que, no inverno, é normal haver neblina, mas nunca as nuvens pastosas que o impedem de ver o inteiro caminho, por isso é preciso ir devagar, com cautela, de passos comedidos. Para ele, não era este grande problema algum; desde menino, acordava às quatro e meia, ainda com o céu estrelado, e seguia com o pai e o sono para a labuta matinal da pesca, mas não com demasiada bruma, nem tão cedo assim. Cada esquina, cada curva do caminho que levava ao ancoradouro, ele conhecia de olhos fechados, ou pesados de sonolência e desamparo. Seguia com o velho Honório, mastigando a noite e ouvindo os pigarros severos do pai, esforçando-se por segui-lo na rude jornada de pescadores O pai transformava essas jornadas em silencioso exemplo da dura vida. Naquela madrugada, depois de tantos anos, o ruço não parecia igual ao das outras vezes e não se pretendia chamar nevoeiro, mas ruço, que aquele outro nome, nevoeiro ou névoa, era para os bem letrados e os poetas, quando o manto embranquecido dava ares de vaga literatura. Estava espesso o clima, difícil de respirar; ao invés da sensação cortantefria da bruma; José Inácio sugava o ar com esforço, com o vigor de seus vastíssimos pulmões, habituados aos ventos livres e soltos do mar alto. Ardiam-lhe os olhos, o ruço cortava feito navalha e ele desejou beber um copo de café bem quente que lhe trazia o conforto do calor e o sabor da memória perdida na infância, com o pai. O sentimento não passava de uma vaga sensação que seu precário vocabulário não podia definir, mas não significa que não sentisse, significa que o não traduzisse. Fora ele um homem letrado, saberia que as memórias indizíveis é que são as que mais importam, pois é com elas que se escrevem poemas e se fazem literaturas, boas e más. Que é com os pensamentos invisíveis o fazer dos poetas. Também é com elas que as boas intenções povoam o inferno, principalmente quando a elas nos entregamos.
            Fazia parte de um antigo ritual de pescadores, que ele aprendera com o velho Honório, de parar no bar do seu Antonio, engolir um copo bem quente do café preto. Nos dias de luxo, vinha com leite. Antes mesmo dos cumprimentos, dos bons dias ao rude Antonio, cuja cara fechada recusava intimidades; a corrente morna da bebida enchia de vigor o ânimo dos pescadores, cujas conversas se aqueciam ao sabor das brincadeiras. Só depois é que seu pai explodia o vozeirão num bom-dia estridente e desinibido, por modo de atiçar desaforos e chamar sobre si a importância que supunha ter. Fora o chefe, o líder, o capitão seu Honório.
Seu Antonio sempre respondia com um resmungo ríspido como se gentileza fosse desaforo. Respondia assim porque eram, os dois velhos, íntimos, ambos amassaram o pão da vida e sobreviveram às agruras do trabalho rude. Às vezes, dependendo de talvez seus sonhos, mal ou bem sonhados, seu Antonio retrucava: Bom dia por quê?ou, bons dias para todos, ninguém adivinhava qual das duas falas se seguiriam. Seu Antonio, com certeza, não passou a dura existência distribuindo sorrisos. Um bom dia burguês não é para quem mói a vida na aspereza de um precário quiosque junto à praia. Sua dura existência repetia um pouco a pátria de onde viera, pátria de camponeses que um dia conquistaram o mundo, mas isso foi há muito tempo, um tempo difícil de crer e que se tornou uma herança insuportável denunciada nos livros de história de seu país, por isso seu Antonio não conhecia com detalhes a fantasia secular de sua Pátria, nem dela podia se orgulhar. Aquela grandeza perdida não lhe permitia a aristocrática delicadeza dos bem educados, pois dela jamais participou, exceto na pouca escola que tivera na crua infância do Mondego, antes de cumprir o destino de sua terra: viver longe dela e fornecer braços baratos ao mundo, vivendo do áspero e da ferocidade do dia.
Seu Antonio teria a idade provável do velho Honório; se não estivesse este descansando no fundo do mar alto como convém aos pescadores de verdade.O mar é sempre o túmulo mais digno que se pode ter, sendo pescador. Talvez pudessem espichar os longos silêncios com que dialogavam mundos improváveis, seu Antonio e o velho, sob o olhar inocente do pequeno José Inácio a dizer um ao outro coisas que menino não podia compreender, mas podia suspeitar dos risos escancarados e dos olhares escandalosos que lançavam aos corpos das mulheres que por eles passavam, dos ditos escandalosos que a criança mal podia compreender. Mas compreendia que não era para contar para a mãe.
            No entanto, que malícia demoníaca impedia José Inácio de enxergar, naquela manhã, a birosca do seu Antonio?! A cerração espessa em torno do pescador impedia-o de vislumbrar com nitidez o que a volta dele se ia tornando vago, fluido, amorfo. José Inácio estancou o passo e mirou o céu, branco branco branco, sem ser céu. Sem nada compreender e menos ainda entender, José Inácio temeu pela faina do dia. O barco não vai sair, não vai ter peixe para vender. E foi caminhotateante que chegou ao quiosque. Tudo fechado, nem o tampo de madeira que servia de balcão e janela, simultaneamente, estava arriado. Não se sentia o cheiro sempre-memória do café, celebrando o dia. A névoa brancoleitosa ardia-lhe os olhos ressecados. Seu Antonio não abriu o bar naquela quase manhã. (Nunca tinha acontecido, não que se soubesse), nem os pescadores apareceram, portanto não tinha café, só a bruma ardia sem alívio, acidamente intrusa.
            Em silêncio, José Inácio sentou-se cauteloso, como uma pálida esfinge, no banco de madeira e torceu para o sol iluminar o céu opaco, seu Antonio acordar, o quiosque abrir, a bruma evanescer e este enredo começar, ou sequer existir, se acaso a névoa levantasse. Mas não levantou, nem agora nem mais tarde.
            José Inácio, na solidão da manhã estranha, ainda tentou ouvir as ondas quebrando na praia, talvez chamando-o para a labuta, mas não ouvia direito, era como se uma grande caixa de veludo envolvesse as ondas, sem se ouvir o som de elas quebrando.
            Esfregou os braços para espantar o frio, encolheu as pernas fortes, abraçando os dois joelhos, em atitude de inquieta e desequilibrada espera uterina.. De sua boca seca, uma palavra brotou, áspera, como a desesperança:
            Pai!?
            Que demoníaca malícia recobrira a cidade daquela maneira? Já se sabe que os mistérios do mar são intensos e infinitos. O grande mar é maior do que pode supor nossa inquieta segurança, ele pode tudo ou mais. Então, este nevoeiro denso e ácido podia ser uma desses mistérios sem fim. Se o pai estivesse vivo, sabia o que fazer, mas eu não, sou pouco para tanto segredo.
            José Inácio era ainda moço e não sabia ainda de todas as coisas que deveria saber um pescador experiente. O pai morrera muito cedo. De todas as coisas que com ele aprendeu a gostar: o silêncio prudente no meio do mar, as vagas mansas balançando o barco, os longos suspiros olhando o nascer do sol avermelhando o horizonte, tudo isto ainda era insuficiente para fazê-lo um homem. E naquela manhã incomum, com o nevoeiro adensando, o barco sumindo no meio do branco, José Inácio sentiu-se pequeno como um grão de milho, sem saber o que fazer.
            E assim, meio estirado no precário banco de madeira, ele torcia para que o sol nascesse afinal e dissolvesse a tristeza da madrugada.
            Tinha sim, muita coisa ainda por aprender, mas tinha também de buscar o pão de cada dia, buscar os peixes, vendê-lo por preço vil e esperar que as coisas melhorem, com a ajuda de Deus.
            A palavra outra vez brotou como desprotegida de seus lábios ressecados:
            Meu Pai???

sábado, 10 de março de 2012

1º capítulo


1
            a vastidão da bruma espessa recobriu toda a cidade, de modo que, nas praias, pelas esquivas esquinas e na deserta avenida à beira-mar, enxergava-se quase nada. Uma ácida névoa branca e seca foi diluindo a paisagem, os prédios, os automóveis, a tudo resumindo em um desenho de vagas silhuetas, difusas, de estranho cenário. Algumas estrelas claras deveriam florescer na ternura da presumida aurora, mas o ruço opacodenso nos impede de contemplá-las. Vigia os sonhos de quem lá vive a cerração macia que recobre os edifícios e espalha sobre a cidade uma névoa leitosa. Que arcanjo teu sono vela, ó cidade, que dorme? Até onde levarás teu sono? Assim se repete a lenda de que toda cidade tem seus segredos. Coube-me a solitária tarefa de contar esta estória, que o narrar tem dessas astúcias, torna o que é, de natureza sua, incompreensível compreensível ou pelo menos aceitável, conforme se vê nessa procissão de sonâmbulos que vagam na paisagem.

            Na noite do dia anterior, o céu estivera estrelado, com raro sopro de leve brisa, é verdade, mas de um calor incomum para os meses de friagem. Aproximando-se agosto, a ventania sopra impiedosamente e as ruas se tornam desertas; os habitantes se recolhem em contritas meditações. Como a cidade se construiu em volta de poucas ruas e estreitas vielas, contrastando-se com a generosa amplidão do mar e aos longos areais das dunas, o sopro da ventania se confunde com a sonoridade de flautas mágicas. Os agudos sons penetram o silêncio da noite, o povo escuta os lamentos dilacerados dos ventos e os figura vozes longínquas de mau agouro, sobre-humanos murmúrios dos mortos, lamentando as penas da purgação, para aqueles que supõem a morte um judicioso ajuste de contas, com suas penas e recompensas. Agosto é o mês das fantasmagorias, que essas vozes murmuram na dor inapelável das penitências. O dia que não amanheceu amanheceu com os ventos que não chegaram, e nunca chegarão, porém sucedeu o nevoeiro. Logo mais, talvez, os ventos. Este dia nunca mais será esquecido, ou será?

            Aconteceu de repetirem-se as Palavras do Testamento Velho e do Novo, para confirmar as visões daqueles que disseram, tantas vezes, e tantas vezes foram ignorados: que o tempo é circular e eterno o retorno. Que diante da esfera temporal, não passamos nós de um divertimento do destino e nada há que se possa mudá-lo, antes e como hoje,e possivelmente sempre. A nós foi dado o dom de saber dos limites da vida, sem jamais poder ultrapassa-los e a isso chamam Razão.. Um Deus irônico e muito astuto nos deu o direito de saber que morremos e isto fez toda a diferença, como estão cansados de saber todos os filósofos ou simplesmente quem viver demais e nisto se der ao trabalho de pensar os dias de sua existência.
            Do alto, para quem se dispuser a subir o morro da igrejinha, pode-se ver uma densa massa de bruma esbranquiçada que os românticos poderiam chamar de véu de noiva, porque é assim que todo o povo lhe chama, e o povo, como se sabe, é romântico. É como se houvesse algum casamento a ser realizado naquela manhã. A luz do sol  ainda era vaga e fria, porque a aurora nem vermelha podia ser. Não havendo praticamente horizonte visível, alguém podia supô-lo, principalmente se fosse um morador da cidade, acostumado ao espetáculo exuberante do amanhecer, tingindo de vermelho o fim do mundo e inundando de luz branca toda a paisagem.
            Aos poucos, com a resumida claridade da manhã, o povo foi despertando para entrar em um pesadelo, talvez longo, talvez curto, mas sempre um estranho pesadelo.
Neste momento, a cidade está coberta de cerração e de vozes temerosas em secretas orações, de muitos temores.
            A cerração recobriu de branco tudo o que os olhos podiam acaso vislumbrar. Somos matéria de sonho e sono, sem saber quando é um e quando é outro. Que nossa vida curta, cercada de sono, e isso só faz confirmar a intuição de um certo pesonagem magistral que também conheceu a bruma em seu castelo, em sua Dinamarca apodrecida.
            Longo será este dia. Muitos de nós ficaremos paralisados pelo estupor, outros, um pouco mais atirados, tentarão entender o que se passa, mas, no fundo, é todo um mistério gasoso que recobre as praias, as ruas, as avenidas., um mistério a ser decifrado por quem não dispõe de outra coisa senão uma infinita paciência e igual credulidade.
            Mergulhados na névoa branca, quase nada se pode enxergar. Tateia-se cuidadosamente, enquanto o trânsito cessa e as ruas se tornam desertas. Estranha manhã aquela, numa cidade qualquer.
            Nem os pássaros se podem ouvir. Até parece que os pardais, os colibris, os quero-queros, os sabiás, os pintassilgos, as cotovias, se as havia, não mais chilreavam. Nem os bem-te-vis denunciavam o que viam, nem as rolinhas apagavam do chão as trilhas que prenunciavam a mítica fuga do Senhor, o fogo-apagou-por-aqui-não passou. Nem os coleiros, engalanados em seus de fraques de gala, apareceram naquela suposta manhã. É que o fogo que por aqui passou, ninguém jamais apagou.
            Um céu de chumbo impede ver o sol. A madrugada parece longa, muito longa, demasiadamente longa, enquanto a névoa se espicha, preguiçosamente, e recobre cada canto da cidade.
            Em breve, esse povo se levanta para o trabalho e os boêmios esfregarão os olhos, enquanto cospem o amargo da noite e provavelmente dirão que o sol é um canalha, porque os desperta para a vida dos outros, que não a deles. Não havia sol, apenas a branca claridade a cegar, a cegar.
            É assim que este dia não amanhecerá.

Abertura do livro com epígrafes




Agora vemos em espelho e de maneira
confusa, mas, depois, veremos face a face.                                                                                     I Cor 13,12


Ora, o sétimo dia não tem crepúsculo                                                                           Agostinho de Hipona


Ouve-se muitas vezes dizer que a arte tem por função
exprimir o inexprimível: mas é o contrário: a tarefa da
arte é inexprimir o exprimível.
Roland Barthes

Um desprevenido morador da cidade, quem primeiro viu a cerração, não a ela chamou névoa, mas Profecia.


Deus existe, sim. Quem não existe somos nós.
(Dito por um desocupado filósofo, depois da névoa.)