“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 21 de julho de 2012

Último capítulo


20
    (texto encontrado num velho baú , depois da morte estranha e anônima de seu autor, igualmente anônimo e cego)

            No Forte, no centro da sala-d’armas, um cômodo todo ele caiado, e as grossas paredes do século XVII, uma pequena esfera translúcida feria os olhos de todos nós com intolerável fulgor. A esfera recolhia-se dentro de um cilindro e reproduzia o desenho que servia de epitáfio ao túmulo de Arquimedes, com seu famoso teorema cujos termos anunciavam a razão matemática entre a superfície, o volume do cilindro e o da esfera: uma relação de 2/3. De longe, parecia estar imóvel, porém julguei que se movia sobre o próprio eixo. Também achei que este movimento era ilusão. O diâmetro do Aleph (chamemos assim à esfera, como lhe chamou Borges, o cego, estático no meio da sala, com Argos a seu lado) seria de 10 ou 12 centímetros, dentro do cilindro, porém, o espaço cósmico parecia caber inteiro dentro dela e era ali a origem do nevoeiro, da névoa, do ruço, da neblina e de todo este inusitado Graal.
            O espaço é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma, pronunciou o cego, escandindo as palavras, cuidadosamente. Cada coisa era infinitas outras porque víamos o resumo de nosso pequeno mundo enevoado. Vimos o infinito mar e a aurora, vimos a tarde; vimos figuras humanas arrastando-se sob a cerração; vimos as largas avenidas silenciosas e a Praça da Matriz com seu relógio congelado; vimos o pálido disco solar inibido pelas nuvens e o cão Argos farejando alguma saída; vimos os sôfregos beijos entre Lívia e Rodrigo, com a ansiedade dos amantes des-esperados, a irritação dos governantes da cidade, impotentes, frente ao fantástico absurdo. E vimos padre Luis flutuando seu voo errático e as mais soberbas casas e edifícios, o que em segredo se elabora, o que foi pensado e temido, o sono rancoroso dos miseráveis, o absurdo original e seus mistérios, enfim, tudo o que o Poeta também viu em seu claro enigma, nós vimos, siderados, na antessala de Infinito branco vestida, noiva inconcreta.
            E surpreendeu-nos, desenhado na parede da sala, o Criptograma de Pompeia. Não saberemos quem ali o transcreveu, mas era em tudo semelhante ao mesmo desenho que se encontra numa coluna de uma antiga mansão na devastada cidade, depois que o Vesúvio a destruiu. Talvez uma analogia macabra entre o distante passado e o presente incompreensível, mas nós vimos, na parede, o criptograma, o mesmo que lá esteve e que desafiou as inteligências e a argúcia de tantos quantos pretenderam decifrá-lo, por seculares desafios, mas que nossa cidade, enevoada, reviveu não se sabe por astúcia de quem ou de quê. Ou de Quem ou de Quê.
            Eis o criptograma:
R O T A S
O P E R A
T E N E T
A R E P O
S A T O R

            Lido em todos os possíveis sentidos, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima, lá está a sentença, a espantosa teodiceia:
            ROTAS OPERA TENET AREPO (OPERA) SATOR, Deus mantém as obras do homem em sua mão desde o princípio das coisas.
            Suspeitamos então o sentido de nossa tragédia. Todos nós assentamos que Deus existe, sim, quem talvez não exista somos nós e que não nos resta outro destino senão a humilde reverência ao Criador que tudo sabe e tudo vê. O resto é silêncio e sofrimento, angústia e desespero.
            Fez-se escuridão de repente dentro da sala. Fomos tomados de um sono irresistível e sonhamos que aquela aurora embaçada de névoa inaugurava o dia que nunca acontecera e de algum modo celebrava a confusa verdade de que toda essa máquina do mundo nasceu no mesmo dia em que nascemos nós para o nevoeiro. O nevoeiro era a cifra de nossa incredulidade, o testemunho de nossa falta de futuro, de nossa descrença e de nossa vontade enfraquecida. O acontecimento denegado por nós deixava as marcas de nossa inautenticidade. Não compreendemos o que uma vez se chamou vida e destino, porque empobrecemos, carentes de uma gaia ciência que nos devolvesse o sentido de viver.
            E fomos tomados do profundo torpor e dormimos todos em meio à névoa, tocados talvez pela asa de um anjo; dormimos um sono inquieto, não obstante profundo, de talvez muitas horas, pois acordamos com os latidos de Argos, o cão, que já se retirava. A luz do sol em nossos rostos anunciava que ali nascia o dia sem névoa, o primeiro depois dos acontecimentos, não obstante resolvêssemos, sem uma palavra ser dita, considerar um dia para nunca mais lembrar. E este ficou sendo nosso contrato, nosso acordo. Nunca mais. Os relógios marcavam seis horas e quarenta e oito minutos, enquanto combinamos uma amnésia consentida e voluntária.
            Na luminosa manhã, sabíamos que toda cidade tem seus segredos, nós também temos os nossos. O segredo do dia que nunca existiu jamais será violado.
            Seguimos, cada um, seu caminho e sobre o nevoeiro, nunca mais nada se disse, embora o esquecimento seja uma forma de lembrança. Não obstante, cada um de nós leva dentro de si o seu próprio nevoeiro.
            De tudo o que restou, o rastro é o silêncio. Embora o que se vai aqui escrito seja sua primeira e única violação.
            Mas sempre um rastro de algo que um dia espantou nossa alegria, mas que nós lutamos para reavê-la. E conseguimos, mesmo custando nossa memória.

            Lecturis salutem

sábado, 14 de julho de 2012

19º capítulo


19                                   a melodia eSPALHOU-se por toda parte, tecida pelas vozes trêmulas dos cantores. Não tinha letra, como aqui se descreveu, era apenas um vacilante solfejar, uma melodia, um lamento murmurado de gargantas apertadas, na esperança de que a névoa, afinal, se dissipasse por artes da cantoria ou da vibração de vozes. Argos, o cão, pôs-se em alerta, erguendo as orelhas pontiagudas, ouvindo outras melopeias que não podiam os humanos perceber. Não se pode garantir se melhor ou pior. Rodrigo abraçou Lívia pelas costas e ela deitou-lhe nos ombros os levíssimos cabelos louros de sua delicada cabeça, respirando fundo, imaginando; quem sabe, uma longa e emocionada despedida.  Um breve roçar de seus lábios no pescoço de Lívia que se encolheu como uma criança medrosa lembrou que a vida ainda pulsava.
José Inácio e seu Antonio tentavam seguir o murmúrio das vozes, mesmo sem conhecer a melodia, mas era só para estarem solidários com a dor dos outros. As pessoas buscavam abraçar-se ou permanecerem de mãos dadas, enquanto a vibração de suas vozes poderia romper o nevoeiro, como se cristal fosse. Vaga esperança no meio do desespero, inútil exercício, talvez.
            E assim permaneceram por tempo incontável, porque contá-lo não seria possível sem o tempo, ouvindo as ondas explodindo na praia em harmonia com os cânticos solfejados e as orações sussurradas, cheios de temor. A melodia embalava o marulho das ondas.
            Eis senão quando, Argos, o cão, emite um latido de alerta, pois que, do meio do nevoeiro, surge Padre Luis, seguido das beatas e suas vozes estridentes, interrompendo o silêncio e a reverência do ritual. Entoavam, com suas vozes agudas, os hinos religiosos, enquanto o padre gritava com sua voz esganiçada, em tom de flautim: Arrependei-vos, arrependei-vos antes que seja tarde. A mão de Deus será vingadora. Abram seus corações que este é o fim dos tempos.
            O povo aconchegou-se, as pessoas abraçarem-se ainda mais fortemente; com medo do que fosse suceder. Lívia e Rodrigo cingiram os corpos como se este gesto, tão comum a dois amantes, pudesse significar a salvação da espécie. Juntos, quem sabe, poderiam sobreviver ao mistério, superar o medo e, quem sabe ainda mais, pudessem sentir-se comprometidos com o dia seguinte, podiam repetir o casal do gênesis e recomeçar o gênero humano, mesmo que fosse para também repetir o equívoco de Deus. Até os sons abafados desta cidade secreta devem ser outras tantas álgebras e rigorosa linguagem que provavelmente têm suas chaves correspondentes, suas duras gramáticas e sua fluida sintaxe, e assim este nevoeiro, que a todos atormenta, pode ser o espelho de coisas inexplicáveis, pode ser um texto ainda não decifrado. A decifração do enigma branco não parecia estar ao alcance da inteligência daquelas pessoas, nem mesmo do padre Luis, que guiava o grupo de beatas em direção ao Forte, não se sabia por que razão,  se existe razão nos lunáticos, especulação sobejamente inútil em face dos acontecimentos aqui narrados.
            Quando indagado, padre Luis arregalava mais ainda os olhos injetados, anunciando, com sua voz profética, que o mistério está no forte, é de lá que vem a neblina, eu vi, eu vi a revelação. E as beatas seguiam-no mesmerizadas, e todo o público também resolveu acompanhá-los;  afinal, no meio de tanta dúvida, tanto medo e incerteza, supor uma explicação para o fenômeno parecia fazer sentido. Portanto, em fila, caminhotateante no meio da névoa, aquele grupo bizarro seguia o padre que, em transe, entoava cantos religiosos em latim. O povo não os compreendia, mas isto não tinha a menor importância, pois se entendia que a jornada em direção ao Forte poderia ser a solução do mistério na língua da Bíblia. E isto merecia respeito e mesmo comovida reverência.
            Ainda era dia (isso se deduzia da precária claridade), mas não se sabia quanto faltava para o entardecer e a consequente escuridão que haveria de suceder com a noite. Era a escuridão da noite o maior de todos os temores, porque todos seriam atirados numa espécie de desamparo e de cegueira maior e involuntária. A névoa, associada à escuridão, ampliava o temor de que algo nefasto estivesse para acontecer. Talvez isto explique porque aquela pequena multidão se dispunha a seguir o padre em direção ao suposto fim do enigma.
            Embora descrentes, Lívia e Rodrigo seguiam a procissão, junto com Argos, o cão, que parecia estranhamente confiante e seguro farejando a rota que seguiam. Argos, o cão, avançava a alguns metros na frente de casal e de vez em quando tornava o focinho como a assegurar o acerto da escolha. Sim, era como diziam seus olhos argutos, podem seguir-me que eu já sei para onde vamos, confiem. O cão trotava seguro, quase ao lado de Padre Luis, um e outro pareciam saber o que faziam.
            Pois este caminhar não incerto apontava para a construção branca, sólida, plantada no alto do rochedo. O Forte, já de quatro séculos, garantiu a integridade da cidade, no tempo em que os piratas franceses e holandeses por aqui passaram, em busca do pau-brasil. Era uma construção imponente que ainda guardava os sinais de sua petulância orgulhosa. Dali é que vinham os tiros de canhão, impedindo que a cidade fosse vilipendiada pelas mãos impuras dos corsários e que suas mulheres conhecessem a ignomínia de um estupro. A seus pés, pousaram índios e brancos, comerciando o permitido e o proibido; sob a proteção de sua sombra e era sob o signo de sua imponência que se podia dormir em paz. Enquanto dele se precisou, enquanto ao Forte pertenceu a tarefa de proteger as pessoas e as casas, as ruas e os palácios, foi ele moendo o tempo, deixando passar os séculos por suas paredes brancas e aos poucos foi perdendo importância, porque já não se invadiam mais as cidades pelo mar, nem por piratas, mas por outras formas menos rudes de invadir, nas quais não se viam armas, mas a riqueza e irreverência petulante dos turistas para os quais não se necessita de um Forte.
            Por isso, hoje, não passa de uma memória longínqua de uma história de que ninguém se lembra mais. A edificação, sob os cuidados da prefeitura, é apenas um lugar exótico que anônimos visitantes ocupam sem se importarem do que fazem ou desfazem. Onde à noite, por exemplo, fogosos casais exercitaram uns nos outros a mais antiga das coreografias, a do prazer. As paredes, outrora alvas, estão hoje desenhadas por vocábulos incompreensíveis, nomes e lugares distantes, de fulano que ama fulana ou de fulano que esteve aqui em certa data. Não se pensa que ali passeiam fantasmas de outras vidas, contando a longa história de uma conquista, e que deviam merecer mais respeito.
            Quem se importa com as vidas que circulam por suas paredes grossas e dos velhos soldados, que passeiam por seu pátio, vigiando, fantasmas que são, impenitentes, o desprezo do tempo?
            Lívia e Rodrigo, também José Inácio e seu Antonio, tomaram o mesmo caminho em direção ao penhasco em que descansava, já por quatro séculos, o Forte. Ah, sim, lá também estava Borges, ao lado de Argos, o cão, que agora  nos guiava pelas entranhas do caminho. Ele, com sua bengala de cego, tenteava o passo em direção ao edifício, tendo surgido do fundo de alguma memória funesta há muito dispersa nas lembranças difusas daqueles insólitos peregrinos. Argos, o cão, era o guia.
            Posso dizer que entramos todos nós na sala-d’armas , que é onde se supunha estar a solução do mistério.

sábado, 7 de julho de 2012

18º capítulo


18  
            não se falou no mar nesta história que já vai ao final sem que saibamos exatamente do que se trata. E como se pôde esquecer o mar numa cidade banhada por ele, banhada das suas águas clarazuis? Ou quando o sol brilhava -- ontem mesmo brilhava o sol -- , e as areias reverberavam como espelho à luz intensa deste mesmo sol? Pois o mar continua lá, mas somente seu ruído rouco, enfurecido, pois as ondas explodem na praia, imensos caixotes, ruidosa goela primordial. Não se pode ver o horizonte, isto está evidente. A neblina cerrou-nos a paisagem das águas infinitas como se fosse um cortinado branco, opaco. A névoa dança de um lado para o outro, reverbera o suposto sol que brilha por detrás dela; e só se vê a massa meio cinzenta das águas que salgadas ainda são, mas não são mais os brilhantes diamantes de azul vestidos ou a líquida esmeralda dos românticos romances.
            O povo sai de dentro da névoa e se ajunta bem na frente da praia, onde se reuniam lembrando os domingos ensolarados, em que festejavam o fim de semana, com os sambas, as cervejas, os corpos expostos aos prazeres do sol e dos pecados, ao lado dos ricos turistas. Mas não hoje, mas não agora. A densa cerração encolheu os horizontes, a linha do fim do mundo já não mais existe, o que existe é uma parede esbranquiçada, próxima aos olhares de cada um, como se dissesse que o mundo acaba ali e o que vem depois é uma paisagem rasa, um plano limitado que devora todo aquele que ousar ultrapassar a parede. Não se pode mais compreender o infinito mar e seus mistérios, o mar acaba logo ali, ao alcance de todos os olhos. Já não se pode dizer que  é infinito o mar.
            Trágico é o silêncio das bocas fechadas, dos corações aos pulos, das mãos cerradas em outras mãos, o gosto ruim do medo, a saliva e a vontade de ceder à pressa que chega por todos os lados, o medo. Ninguém se atreve, nem mesmo José Inácio, por todos tido como hábil pescador, é capaz de pronunciar uma única sílaba. Talvez não somente por medo, mas por uma cautelosa reverência pelo absurdo cenário que se pode vislumbrar.
            O longo mar salgado que de Portugal roubou as lágrimas, não propriamente de Portugal, mas de suas mulheres, ruge feroz. Seu Antonio disto sabia, sem precisar ter lido em nenhum livro, mas sabia-o de experiência feita, que o salgado deste mar e de todos os outros que porventura existem ou existirão, foram das lágrimas das mulheres  portuguesas, de suas lágrimas que souberam assim a gosto de mar. E o cheiro agridoce da maresia garantindo que ali estava o oceano, mesmo que fôssemos todos cegos, ou de nascença ou por causa do ruço, e como o cão que resolveu permanecer ao lado das pessoas, como fiel guardião de não se sabe o quê. O cão que se chama “Argos”, cujo nome já apareceu em outras circunstâncias marítimas e que deve ser parente daquele outro, quando um inteiro continente se partiu e uma jangada de pedra repetiu os assombros, quase como este que estamos vendo. Lívia, todos mais, e o cão recolhem-se na multidão.
            E nesta calçada da praia pressentida e quase vislumbrada, o povo se aglomera, espantados olhares, narizes ao alto, ofegantes, guarda a respiração como preservasse o ar impregnado de maresia, de cheiro do mar, como se guarda o cheiro do sexo da mulher com quem nos deitamos quando bate o amor em nossa porta, da vontade ou desejo, conforme for, e deixamo-nos afogar, náufragos que somos, do pecado mais querido e mais praticado. E também dos homens que se afogam nos femininos quereres, e as mulheres que sabem quanto valem e podem, por saber esperar mais do que eles, porque já nasceram esperando.

            Quem sem lembra quando e como esse povo começou a cantar? Não era uma melodia festiva e alegre como aquelas que saem dos aparelhos de som que as barracas de praia desfilam, nem eram as músicas estridentes que dos batuques saiam e que tanto irritam os refinados veranistas que por engano escolheram a praia errada. Não. Era antes uma melodia profundamente melancólica, um arrastar de vozes trêmulas, cautelosas, sem muita combinação. Não tinha letra, era um solfejar abemolado, parecendo um mantra, na talvez esperança de que assim se dispersasse a névoa e de novo pudessem eles ter de volta o infinito mar azul, lâmina ensolarada, líquido papiro ou esmeralda, lugar de poemas e emblemas de felicidade.
            Mas não. A névoa recobria ainda mais os olhos e choraram amargas lágrimas de sal e mar, enquanto a melodia se misturava com a névoa de modo que não se sabia o que era mar, o que era névoa, qual coisa eram todos.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

17º capítulo


            17    o rosto que LÍVIA percebeu no meio da multidão não lhe pareceu desconhecido. A névoa intensa não lhe permitia saber se era Rodrigo, por isso teve de tocá-lo cuidadosamente para delinear seus traços, traços que bem conhecia. Era sim Rodrigo que lhe tomou as mãos como se faz com os náufragos. Lívia aproximou-se mais dele, abraçou-o com suavidade e disse que estava com medo. Rodrigo perguntou-lhe como conseguira sair de casa e Lívia contou-lhe a história das últimas lembranças, de como saíra de casa tateando pelas ruas, de como os automóveis passavam perigosamente por ela, e de como encontrara um cão que chamara Argos e mais os dois homens que com ela estavam: o pescador e o velho português. Rodrigo, por sua vez, contou-lhe dificuldades semelhantes, mas que resolvera vir até a Praça da Matriz porque ali havia alguém de saber o que fazer. Desejava encontrá-la para dividirem juntos o pão da intimidade e seus temores. Na prefeitura, souberam, por ouvir dizer, que ninguém tinha a menor ideia de como agir. O fato de a cidade estar fechada para o mundo e o tempo ter parado era, para ele, motivo de quase pavor. Nos poucos contatos que tivera com pessoas que se aventuravam a sair de casa, sentiu que o pânico já era evidente. Muitas casas comerciais foram invadidas, subtraiam-se mercadorias porta a fora, embora o esforço necessário para carregar as coisas roubadas exigisse do invasor alguma força física e não pouca agilidade. Além do peso dos objetos, a respiração tornara-se precária e o larápio quase desmaiava, por falta de ar. Talvez por esta circunstância, o vandalismo não fosse tão intenso, porém era metódico. Embora sempre se pudesse supor a inutilidade do roubo, se não se vislumbrava futuro para a cidade, eles aconteciam. Afinal, quem resiste ao apelo da propriedade, mesmo ilegal e indébita?
            Lívia apertou seu corpo contra o de Rodrigo e lhe disse que estava com medo. O cão Argos aproximou-se em alerta, como se lhes garantisse a proteção de seu território. Os outros dois homens, percebendo a intimidade da conversa, afastaram-se um pouco, mas foi José Inácio quem rompeu o silêncio momentâneo. E agora, o que a gente faz? Devemos esperar, Rodrigo disse enquanto acariciava o rosto tenso de Lívia, devemos esperar até ver se o nevoeiro passa e as coisas voltam a seu lugar. Não parecia assim a seu Antonio e seu espírito prático. Opinou que deviam tentar encontrar alguma explicação para esta situação inexplicável. Não podia uma cidade desaparecer sob um nevoeiro, nem o tempo parar, enquanto o resto do mundo segue sua vida normal. As notícias diziam que o sol brilhava logo nos limites da cidade e que não se podia passar das nuvens ao sol, porque o nevoeiro não permitia. Quem tentasse, como já antes outros tentaram, ficava paralisado e sem respiração. Era como se tivessem virado peixes que só conseguem viver sob o ruço, respirando aquela nuvem ácida e espessa como em um aquário de neblina.
            Não se pode viver assim... Isto não é coisa que se possa aceitar. A verve combativa de seu Antonio não se conformava com a situação. Mas foi Rodrigo quem sugeriu que procurassem outras pessoas, algumas ali da praça mesmo, para saber como agir. Ou devíamos esperar que alguém da prefeitura dissesse alguma coisa, pois estavam em contato com a base militar e eles lá devem saber o que está acontecendo. José Inácio concordou e resolveram aproximar-se das outras figuras pálidas que permaneciam na praça, envoltas no ruço.
            São próprias do desespero a resignação e a fé. Muitos daqueles homens e mulheres que se dissolviam na cerração implacável sentiam a mesma dor. Sabia-se que era dia apenas porque um tímido disco solar esforçava-se por iluminar a vida na cidade, por esta razão sabia-se que não era noite e sim dia, mas não se sabia que momento do dia era aquele. O temor aproximava-os de modo que se tocavam, como a supor uma fraternidade nova, imprevista. Sabiam que o destino lhes havia pregado uma peça e, como nessas horas, havia de se buscar culpados; o problema, no entanto, é que, para tamanho absurdo, nem os culpados são possíveis. Pelo menos um consenso começava a surgir daquela assembleia fantasmagórica: era preciso encontrar a origem do nevoeiro, pois só podia vir de algum lugar na cidade; se procurassem com calma e insistência, é possível que se pudesse saber onde começava tudo isto.
            A filosofia dos que assim argumentavam supunha a hipótese de que todo o começo já é um fim, e que em toda origem já lá está sua escatologia. Um princípio que aos poucos ia tomando conta das mentes, mitigando-lhes o pavor e o pânico, embora eles nada soubessem dessas coisas complicadas.
            Em meio a estas dúvidas, perceberam que o cão farejava o ar, andava até a esquina da Praça e olhava para o grupo, como se convidasse a segui-lo. Fez isto várias vezes, até que Lívia percebeu e disse olha o cão,ele está pedindo para a gente ir com ele.
            São os cães fiéis intérpretes do que incomoda seus donos, ou quem eles escolhem para estar ao pé. Já outro cão – Constante – em outra história muito mais profunda e bela do que esta, conseguiu guiar seus donos. A alma do animal é feita desta necessidade, de ser solidários, dando ao homem lições surpreendentes, embora óbvias. Mas o que interessa, neste momento, é que Argos liderava uma longa fila de corpos em procissão, seguindo um animal irracional, já que a racionalidade humana nada podia oferecer para a resolução daquele mistério.
            Quem diria que a irracionalidade de um animal pudesse valer mais do que nossa vã racionalidade?

segunda-feira, 25 de junho de 2012

16° capítulo


16
    quando lívia pressentiu passos em sua direção, ainda não sabia que eram os de José Inácio e seu Antonio. Nem eles ainda estavam de todo despertos da cena que tinham acabado de presenciar na Igreja. Lívia descobriu seus rostos pálidos no meio da névoa, pensando que eram apenas rostos manchados de branco.  O cão Argos farejou os estranhos, rosnou em aviso, mas Lívia tocou-lhe na cabeça imensa e ele aquietou-se, num resfolegar conformado, mas ainda atento.
            Quando os dois homens tentaram dizer-lhe algo é que ela se deu conta do tremor nas vozes, das falas vacilantes e do espanto, no olhar. Menina, aonde vai? Não tens medo de caminhar por aí? Lívia tinha medo, mas reconheceu, afinal, vozes amigas. Não sabia exatamente de onde os conhecia, mas tinha a impressão de já tê-las ouvido outras vezes. Sabia-se segura e calma ao lado do cão. O mais alto dos dois homens disse-lhe que vinham ambos da Igreja e assistiram a uma cena inacreditável e narraram, como puderam, o voo inconcebível do Padre Luis, pela nave central do templo. Lívia ouviu incrédula, mas deu-lhes o benefício do espanto, já que coisas efetivamente estranhas aconteciam, então por que não poderia ser mais esta uma delas?.  E então, o que vocês fizeram? Seu Antonio, com alguma vergonha, repetiu que fugiram apavorados. E as mulheres, ficaram lá, sozinhas? Sim, sozinhas ficaram, mas não pareciam ameaçadas. José Inácio parecia ainda duvidar de seus olhos, por isso falava por monossílabos, cauteloso, sem saber como exprimir aquela cena. Não é sempre que se pode testemunhar este mundo fantástico que nos rodeia, afinal o esforço da razão é garantir o sossego de nosso coração com a lógica da familiaridade, da regularidade, do que se espera e se alcança. Ninguém está efetivamente preparado para uma cidade mergulhada em névoa há mais de cinco horas, a supor pelo cálculo mental do tempo, e ainda por cima a visão de um padre desafiando a lei de gravidade enquanto fiéis mergulhavam o rosto no chão, como se visse uma assombração. Também eles viram, mas, ao contrário das mulheres, preferiram correr, sair em qualquer direção para não ter de aprender que aquele mundo, aquela cidade, vivia o assombro de ser tomada pela loucura.
            O cão agora liderava a jornada. Os dois homens fizeram-se amigos de Argos que os recebeu com orgulhosa indiferença, diferente do afeto que demonstrava por Lívia. Não se pode negar que fizeram amizade, tanto que o cão liderava a caminhada, como se soubesse exatamente para onde ia, mas o cão sabia a quem se pertencia.
            José Inácio, seu Antonio e Lívia eram agora três pessoas e um cão a partilhar o enigma. Sequer podiam respirar com o conforto do ar livre, pois a névoa ardia e o coração deles disparava de medo. Com estes temores, os três encontraram, finalmente, um banco e, pela silhueta desenhada em frente, imaginaram que estavam, de novo, na Praça da Matriz, o que lhes fez supor que andavam em círculo e onde esperavam encontrar alguém que lhes pudesse explicar o que se passava. O prédio da prefeitura ficava logo defronte da Igreja, assim não seria muito difícil, tateando e amparando-se uns nos outros, subir os degraus e entrar no prédio, em busca da alguma informação.
            Lívia lhes garantiu que fora o cão que lhes havia conduzido de volta, talvez porque tivesse algum tipo de faro que os levasse a uma explicação ou talvez fosse o plano dele nos enviar de volta.
            Aos poucos, em passos cautelosos e breves, entraram os três, ou devesse dizer, os quatro, no prédio da prefeitura, porém não encontraram viva alma, pelo menos na entrada. Tiveram, pois de arriscar-se em subir até o andar superior, onde ficavam as salas dos secretários para, quem sabe, encontrar alguém que os assistisse.
            Ouviram ruído de vozes no fim do corredor, coberto pela cerração. Eram vozes aflitas, em tensa conversação. José Inácio notou que discutiam com certa aspereza. Foi seu Antonio, porém, quem supôs ter identificado uma das vozes: É o prefeito que está falando. Acho que estão a reunir-se. Bom que assim fosse, porque nesse caso alguma autoridade poderia informar o que se passava. Continuaram caminhando em direção às vozes e puderam ouvir, nitidamente, a confissão angustiada de algum participante de que nada sabia, era tudo surpresa ou coisa pior, podia ser algum mal insanável. Ainda por cima, somente a nossa cidade estava coberta pelas nuvens, o tempo congelado, as comunicações bloqueadas. Nenhum de nós conseguiu escapar dos limites do município e é como uma prisão. Outra voz relatou fatos inacreditáveis, como a flutuação do pároco em meio a uma missa em que pedia pelo fim da névoa. Estamos então entregues a um fenômeno inexplicável e não podemos fazer nada? Como era isso possível? Alguém poderia dar um palpite, disse o prefeito seriamente preocupado.
            Lívia ameaçou interromper a reunião, mas José Inácio a deteve pelo braço enquanto seu Antonio recolhia-se ao silêncio. Saíram como entraram, sem que ninguém os tivesse visto. A conversa na sala de reunião fora o bastante para que os três percebessem que ninguém tinha a menor ideia do que se passava, estando eles então entregues ao capricho da névoa. Talvez apenas o cão Argos pudesse ajudar, a despeito de ser um simples animal.
            Desceram de volta à praça onde já centenas de pessoas se aglutinavam num comovente abraço de desespero e temor.
            Ao povo, que esperava com paciência, juntaram-se outros que mais vinham, de todos os lados, em silêncio reverencial, esperando algum sinal, alguma explicação. As orações eram sussurradas, principalmente, pelas mulheres mais velhas. A porta principal da igreja abriu-se lentamente e de dentro dela saiu Padre Luis, caminhando como que sobre nuvens, seguido das beatas entoando hinos de louvor.
            Do meio da névoa, vozes misericordiosas apelavam pela compaixão de Deus, esperando não fosse Ele surdo aos apelos de tão humildes suplicantes em vasta procissão.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

15º capítulo


15
    precariamente rESGUARDADOS DO frio, cobertos pela névoa, um punhado de homens e mulheres insones, talvez dez, talvez vinte, esperava condução no ponto do ônibus. Vistos de longe, não eram mais que fantasmas; vultos recobertos pelas nuvens, em que se não era possível definir os rostos, nem tampouco saber-lhes da fisionomia. Podia-se, contudo, adivinhar-lhes o destino e a identidade, pelas marmitas que levavam debaixo dos braços. Era o almoço, ou bóia-fria, que, ao meio-dia, seria aquecido em pequenas fogueiras, caso fosse o almoço nas construções civis; ou em elegantes marmitas às quais se agregavam sofisticadas tomadas elétricas; em outras mais, ainda refinadas, prometia-se um banquete, se comparadas com os precários utensílios de alumínio amassado onde se depositava o rango dos operários. Também neste item desenhava-se o destino das classes sociais, pois, nas primeiras marmitas, guardava-se, não uma refeição, mas a gororoba, o rango, a boia, o grude, já nas outras, podia-se dizer que eram repastos variados, muito além do arroz, feijão, macarrão, farinha e uma ocasional asa de frango assada. Nas outras, havia salada e sobremesa, havia uma refeição que se podia comer com os talheres elegantemente manipulados entre o indicador e o polegar, ocorrendo a um ou outro comensal levantar, doutoralmente, o dedo mindinho, à guisa de bom tom, e não com toda a mão cerrada em volta do cabo do garfo, à moda de garra de ave de rapina, para garantir a posse única da refeição e defendê-la de algum possível predador. Era assim como faziam os humildes marmiteiros, os boias-frias.
            Bendita língua nossa que nos permite relatar quantas sutilezas num só agarrar de garfos e de facas e com elas sugerir uma luta de classes. Pois esses homens e mulheres e suas marmitas já esperavam, não se sabia por quanto tempo, a condução que não vinha. Também não compreendiam por que todos os relógios pararam na hora de vinte para as sete e assim perdia-se a referência e o tempo se mostrava infinito, impossível medir, e não se sabia se estavam ou não atrasados.
            Suas vozes abafadas exerciam o penoso diálogo, sussurrado em uma reverência não se sabe a quê, ou a quem, ou medo segredado entredentes.
            Mas alguém sabe me dizer o que está se passando nesta cidade?
            Não, ninguém sabe ao certo, mas estamos todos com muito medo
            O que significa este nevoeiro? Quase não consigo respirar...
            É, tem alguma coisa errada. Nunca vi isto
            Minha vó falava que no tempo dela às vezes vinham umas nuvens dessas e a gente nem conseguia respirar direito...
            Será que isto passa logo?
            Sei lá... Até meu relógio parou.
            E os ônibus? Acho que não estão rodando. Ouvi dizer que a cidade está toda parada e que ninguém sabe mais o que fazer.
            Então vamos para a Praça da Matriz, quem sabe lá a gente encontra alguma resposta?

            Então sim, dezenas de pessoas, anônimas criaturas, seguiam em procissão, arrastando suas incertezas como correntes pesadas atadas aos pés, como prisioneiros dos eventos escandalosos que impunha a todos seu silêncio fatal.
            Então porque a nós acontecem estas coisas? Já não bastam as dores com que vivemos?
            Ah que são reflexões incomuns a um povo simples, vivendo de satisfazer suas humanas condições, com mais biologia do que filosofia. Mas ensinam as tragédias e os sofrimentos a pensar sobre o destino, e quem sabe não havia, entre a multidão desamparada, algum distraído filósofo? Que isso de pensar não é patrimônio de ninguém, todos podem fazê-lo, basta que para isso tenham ganas.
            Por conta deste nevoeiro imprestável, ao menos para alguma coisa serviu, para que esta inocente multidão soubesse um pouco mais de si mesma, do quanto podia valer, de quanto direito tinha, de viver, de morrer, mais ainda de ser dona de sua própria vida; vivem de nunca chegar e se bastar.
            Poderia ser o nevoeiro motivo para saber, como soube aquele tal Gil Vicente, que, há cinco séculos passados, disse que eram os pobres a vida dos outros e morte de suas próprias vidas (estou a repetir-me, mas é necessário que se recorde o que já declarou seu Antonio). Disse-o pela boca de um miserável camponês, sem reforma agrária, nos mesmos cinco séculos que ainda hoje suportam. De como isto tudo passou escrito, porém, esse povo não podia ler,  não lhes foi dado tempo suficiente para saber de si mesmos, nem suficientes recursos para comprar livros.
            A longa fila se arrastava em meio à neblina, vacilante, tropeçando no asfalto, guiando-se como por instinto, pelos caminhos que todos os dias percorriam, quando atrasavam os ônibus, ou quando o dinheiro acabava e não podiam pagar a passagem até o centro da cidade. De modo que, para esta multidão, caminhar pela névoa não se constituía em alguma aventura. O que lhes causava temor eram as névoas, a brancura irritante do ruço e a acidez nos olhos, porém a vontade de chegar, de desaparecer o nevoeiro, justificava a ousadia.
            E foi seguindo aos poucos, lentamente, a estranha procissão sem devotos. Buscavam a Praça da Matriz, onde ficava a Prefeitura. Supunham que lá teriam informações mais precisas do que acontecera com a cidade, com as ruas, com as avenidas, com a tarde, com o dia e provavelmente a noite. Quando viesse a noite, disseram eles, a escuridão tomará conta de tudo e seremos tragados por alguma coisa muito ruim e feroz.
            Fazia silêncio, um silêncio hostil e algumas pessoas choravam, baixinho, para que os outros não ouvissem e com isto perdessem o pouco de coragem que ainda acumulavam.
            Chegando à Praça, espalharam-se pelo chão, largados como trouxas de roupas inúteis.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

14º capítulo


14
    afinal, conseguiram OS dois alcançar a larga avenida que os conduzirá até a Praça da Matriz onde esperam obter mais notícias sobre aquele dia fatídico. José Inácio e o velho Antonio tateavam pelas paredes, esbarravam em postes e árvores, dois trôpegos bêbados e quase cegos, rompendo a cerração, como se o caminhar fosse uma faca só lâmina, cortando a névoa densa que se repartia em dois para logo em seguida recompor-se em sua integridade atrevida. Como cegos que vão para o abismo, como aqui já foi dito, os homens mais pareciam assombrações, porque seus corpos não eram delineados, eram antes duas massas incorpóreas, tateando com os braços à frente do corpo e quatro olhos inúteis tentando enxergar através da fumaça. Cegos, não eram, pois, muito menos algum Tirésias que sabia dizer coisas incômodas para quem se supõe a salvo das culpas, mas eram mesmo dois amigos solitários desafiando o desconhecido em nome da sobrevivência e da irritante sina da inquietude humana.
            Que poderiam fazer esses desgarrados no meio da neblina? Conversariam sobre as causas do estranho acontecimento, mas sem poderem expressar-se como se expressava, por exemplo, o comandante da base, isto é, com terminologia científica, utilizando palavras incompreensíveis,  que os deixariam apreensivos e mais apavorados ainda se pudessem ouvi-las e entendê-las. Também de nada lhes adiantaria os nomes em inglês com que o comandante ilustrava seu conhecimento. Anunciava estes pareceres por meio de bilhetes trocados nos limites da cidade, uma vez que todas as comunicações estavam interrompidas e as ruas pareciam um cemitério de pessoas vivas cujas vozes eram cada vez mais inaudíveis, conforme ia avançando a tarde. E se por ventura pudessem ouvir os termos em que foram lavradas as razões e as causas, também de muito pouco serviria pelo simples motivo de que, afinal de contas, o comandante não conseguia explicar o que sucedera com a atmosfera e nem quando levantaria o ruço. José Inácio e o velho Antonio tinham explicações mais modestas, sem os nomes complicados que o comandante usava. Suas explicações se baseavam nas histórias contadas na beira do cais, no passado, e na intuição escatológica, quer dizer: no sentimento que ambos compartilhavam de que se tratava de uma intervenção maligna, obviamente uma punição por tantos desmandos e pecados cometidos pelo povo. Mas tu achas mesmo que Deus pune a todos, que não tem gente que está sofrendo sem merecer? A pergunta de seu Antonio trazia de volta as cidades destruídas que na Bíblia se contavam, como Sodoma e Gomorra, e tantas outras com que o Padre Luis ameaça os hereges. É, seu Antonio, o senhor pode ter razão. Mas vai entender o querer de Nosso Senhor? Estas nuvens ainda estão claras porque o sol está de fora, mas logo mais, vamos ter as trevas, igual o pastor leu uma vez no culto deles lá, na igreja que minha mãe freqüenta. Num ponto concordavam: só havia uma causa para o estranho fenômeno, até agora inexplicável: a ira do Senhor estava entre o povo, por conta de nossos pecados, que são muitos. Explicação aceitável, porque sustentada pelos milênios passados, depois de tantas cidades terem sofrido o mesmo destino sem possível remorso. E quando Deus pune não quer saber se há inocentes, e se algum houvesse, é possível que Ele suspendesse a pena. Mesmo isto já ocorreu, quando Lhe disseram que havia pelo menos um inocente numa cidade a ser punida. Não adiantou, o fato é que todos se tornaram culpados. Foi assim nas cidades que viraram cinzas. A gente só não tem o cheiro de enxofre, mas só por enquanto, isto ajuizou José Inácio que de religião provava todas, de todas tirava seu pitéu. Queria se garantir de todas as maneiras de tratar com Deus: as rezas no latinório do Padre Luis, a fúria evangélica do pastor Luciano, a benzedeira que uma vez lhe curara de uma espinha de peixe no pé, os atabaques do candomblé na ponta do caís, onde as putas iam pedir proteção aos orixás, porque o trabalho delas é o prazer dos homens, mas só elas sabem quanto isto lhes custa. Já seu Antonio, português de boa cepa, não admitia as licenciosidades do amigo; censurava-lhe a irreverência e dizia que bem podia ser estas religiões falsas a causa da ira de Deus e do nevoeiro. Que para ele, só havia a igreja de seus pais e dos pais de seus pais, cuja cruz se estampava nas caravelas que inventaram este país e que até por esta cidade andaram. .Não acredito nisso, seu Antonio. Deus não vai punir uma cidade inteira porque tem gente passando de uma religião para outra...A gente só quer se garantir com um lugar aquecido para quando o inverno chegar. Não dizem que a morte é fria como o inverno? Então, a morte bem pode ser um lugar como este que estamos vendo.
            Seu Antonio permaneceu quieto, interrompendo a caminhada vacilante. Olhos para cima, provavelmente com nostalgia do azul, ajuizou solene: Seu José Inácio, isto são mistérios que estão longe de nosso bico. Como todo mundo sabe, nós só vamos pagar a conta mais amarga, que é como sempre foi: os pecados são dos que têm, mas as  penas ficam para quem nada tem.  Já não se disse, na minha terra, que nós somos a vida dos outros e morte de nossas próprias vidas? Pois então.
            E em silêncio, de mãos cerradas, chegaram à praça da matriz, cujo relógio marcava dez horas, desde sempre, ou desde quando o nevoeiro começara.
            Esperavam encontrar uma multidão, reunida em busca de alguma explicação, mas tudo estava já deserto. Permaneceram no centro da praça, de frente para a Igreja, que ainda estava fechada, mas podiam-se ouvir vozes lá dentro. Vozes sussurrantes, recitando vagamente palavras ritmadas, como um estranho coral. Tateantecaultelosos, os dois empurraram a porta principal. Não conseguiram abrir, estava emperrada. Buscaram então a porta lateral, por onde entraram devagar, arregalando os olhos para poderem enxergar por entre as brumas e as lágrimas ardentes que seus olhos marejavam, não de emoção ou temor, mas por conta da acidez da névoa. Se o coração acelerava, foi por conta do medo, do misterioso temor do que iam, por ventura, encontrar ou ver.
            Os dois andarilhos ficaram fascinados e paralisados de temor e reverência.Viram a assembleia no instante em que o celebrante, Padre Luis, flutuava pelo meio da nave central, a dois metros do chão, braços abertos, rosto curvado sobre o peito, crucificado em pleno ar , enquanto as beatas, esparramadas no chão úmido, clamavam em êxtase Aleluia, Aleluia  em meio a uma estranha melodia.
            José Inácio e seu Antonio ajoelharam-se, persignaram-se, de olhos acesos, rostos pálidos, corpos paralisados ante a cena inacreditável. Viram os prodígios no dia dos prodígios.

sábado, 2 de junho de 2012

13º capítulo


13
    estou aqui REGISTRANDO estas más palavras escritas por tortas linhas, de um relato imaginário, no momento em que, de minha janela, pouco posso ver, senão o nada opaco do nevoeiro que apareceu, sem mais, na frente de todos nós desde hoje, pela madrugada, como o leitor já deve estar cansado de saber Percebo o grande cenário brancoleitoso e sinceramente ando preocupado com o que pode acontecer. Esta cidade é simples, com uma população rudimentar, sem sofisticações, um povo sem memória, sem as armas do cosmopolitismo, sem a proteção de uma comunidade esclarecida. É uma cidade desesperada para sobreviver com as benesses que recebe do turismo e dos empregos na prefeitura que, desgraçadamente, é uma das mais ricas do país, graças às facilidades do petróleo. Percebo, desde que me transferi para cá, alguns novos ricos, todos com cargos no governo municipal. Mas isto não me diz respeito, são situações que se repetem por todo o país e esta cidade não é diferente das outras. Estamos cansados de saber que, em nosso país, a corrupção é uma indústria nacional. No momento, preocupa-me é o relógio da Igreja Matriz, única referência temporal que ainda restaria funcionando, que já não mais indica hora certa, está congelado, como todos os outros relógios. Sei disto porque me confidenciou um vizinho, com voz soturna de conspirador. Mesmo sem poder ver de longe os dois ponteiros, quem lá subia (creio que um zelador da igreja) e de cima da torre berrava as horas, já emudeceu. Enfim, não se sabe mais do tempo por aqui e sem o tempo, o que somos nós? A última vez que berrou as horas ouviu-se “dez e quinze”, depois, nada mais se pôde ouvir, de modo que vivemos ma situação inquietante: a volta de nós, presume-se, o tempo segue seu curso, mas aqui dentro, possivelmente por causa do nevoeiro, o tempo parou, melhor seria dizer: o tempo congelou. Soube, ainda por outro vizinho de janela, que algumas pessoas seguiram até os limites da cidade e, ouvindo as vozes do outro lado da estrada, podia-se estar a par dos acontecimentos do resto do mundo. Lá, do outro lado, havia sol e clima regular, estando o ruço apenas em nossas ruas e casas, formando uma espécie de paredão fluído. Não creio ser necessário dizer que estamos todos inquietos, já não há mais alimentos disponíveis nas casas, os supermercados não abriram, porque ninguém se atreve a sair para as compras, e mesmo são raros os estabelecimentos que iniciaram o trabalho. O céu, brancoleitoso, é iluminado por um precário disco solar, frio, sem a exuberância de ontem à tarde quando o verde, o azul e o mar combinavam um escândalo de beleza natural. Tudo parece ter-se diluído numa fantasmagoria inquietante.
            Fico a imaginar como narrar estes fatos para o mundo saber o que houve aqui, supondo que um dia saiamos desta agonia e que o mundo queira saber. Eu, que já não consigo enxergar bem, tenho os olhos permanentemente encobertos por um princípio de catarata, que eu já vivo num nevoeiro.Que fenômeno estranho, porém, permite que apenas esta cidade esteja à margem do mundo, sem notícias, mergulhada na névoa implacável que só faz crescer, sem um segundo sequer de trégua? Mesmo para mim, um narrador experimentado, o fato é sempre maior do que minha precária capacidade de descrevê-lo e de explicá-lo. Só me resta imaginar qual seria o desfecho de tudo isto, acaso fosse um romance.
            Sim, porque há de haver uma causa, uma razão, uma explicação, racional ou não, que, como tudo está, é difícil supor uma causa natural. O nevoeiro, por enquanto, é denso e uniforme, não parece ter lugar de origem, mas tenho a impressão de que poderíamos procurar alguma pista que nos levasse a um ponto qualquer, supondo que haja esta origem. Então, decidi empreender, por minha conta a risco, a busca deste improvável lugar. Tenho certeza de que ele existe e não estará longe. Apesar de minha pouca visão, pretendo ir ao encontro de alguém que me possa esclarecer o que se passa.
            Ah, sim, pode me chamar de Borges; sei que ficarei cego algum dia, não por causa do nevoeiro, para por causa de meu destino. Deus me deu os livros e a noite. Sei que devo continuar escrevendo esta história tanto quanto a natureza se cumpre em fazer-me cego, que nisto não estou sozinho, existem outros que me antecederam neste irônico jogo dos deuses. Homero e Milton são apenas velhos conhecidos do mesmo destino. E dizem ainda que somos Tirésias, somos pessoas que podem decifrar enigmas, traduzir oráculos. Nós, os cegos ilustres.
            Não pretendo ser ilustre, quero apenas saber de onde vem esta névoa, se é que vem de algum lugar. Quero saber o sentido de estar tudo entregue ao nevoeiro, e a cidade ter-se tornado um capítulo ocasional da literatura fantástica. Haverá em tudo isto em sentido oculto, uma razão suficiente?
            Se quiser saber rigorosamente o que se passa, preciso  sair, ir às ruas, visitar a praça onde boa parte do povo se concentra, ouvir o que se diz na prefeitura, a despeito de minha precária visão.
            Mais um vizinho de janela acaba de me assegurar que o nevoeiro se restringe a nossa cidade, que o sol brilha escandalosamente fora dos limites do município. Sabe-se também que as comunicações estão interrompidas e que o tempo parece ter-se congelado com o nevoeiro, por isso não se pode pedir ajuda a mais ninguém fora de nossa fronteira. Temos de contar conosco, com nossa possibilidade de descobrir.
            Vou às ruas tateando, para encontrar o centro deste mistério.  Se o encontrarmos, então poderemos saber do que se trata, pois, como aprendi há muito tempo, é preciso encontrar a origem, o princípio, o começo para não padecer da angústia de ser dispensável.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

12º capítulo


12
    afinal, alguém pode me dizer que horas são, há quanto tempo estamos nesta conversa mole? Sua excelência, o prefeito, enfim, percebeu a gravidade da situação, com todas as suas consequências. Os relatos que chegavam, embora precários, davam conta de que a cidade estava em pânico: os serviços públicos entraram em colapso, os telefones ainda não funcionavam e a companhia telefônica não tinha a menor ideia do que fazer para restaurar as linhas. Do mesmo modo, as escolas não abriram, tendo em vista que nem professores nem alunos conseguiram chegar a seus destinos. Com as comunicações em pane, nada se podia fazer, só mesmo esperar e rezar para a cerração ceder e o sol iluminar a paisagem outra vez, restaurando a vida. Os poucos funcionários que conseguiram chegar à prefeitura informavam que seus setores fecharam, até os bombeiros não tinham como atender os chamados feitos por pessoas que conseguiam chegar até o quartel central, tateando por entre a névoa, em busca de ajuda. O mais velho de todos os auxiliares do prefeito atual, aliás um ex-prefeito, lembrou-se de que, há mais de 50 anos , também ocorrera um fenômeno parecido, mas de menor intensidade e que desaparecera em algumas horas e muitas orações, porém desta vez tudo era muito mais grave e estranho, inclusive porque, segundo se sabia, o fenômeno era restrito a esta cidade e não as outras. Nas cidades vizinhas, o sol brilhava e as pessoas acotovelavam-se nos limites dos municípios para ver a barreira de nuvens, separando um lugar do outro, como uma parede de algodão, que as assombrava. Era uma densa parede branca, espessa, impedindo a passagem de qualquer coisa, até mesmo dos sons. Quem quer que tentasse ouvir alguma voz do outro lado, o que ouvia era um grunhido estranho e surdo. Prefeito, parece que estamos encerrados numa masmorra de nuvens ácidas, densas, como um cobertor de algodão. Ninguém entra, ninguém sai daqui. Foi a informação prestada por um assustado servidor que acabara de vir de casa na estrada, e entrara na sala de reuniões. Vinha testemunhar que, nas cidades vizinhas, as pessoas se reuniam para verem uma assombração: a parede de cerração espessa, a névoa pesada, dividindo a paisagem em duas partes: uma, ensolarada e azul; a outra, branca e cinzenta e ácida
            As informações que precariamente chegavam, inclusive as opiniões de alguns oficiais da marinha que orientavam os voos da base naval vizinha à cidade, davam conta de que, na noite anterior ao nevoeiro, tinha havido um formação súbita de massa de ar quente, uma convecção, nos termos técnicos, que se chocara com outra massa de ar frio, extremamente frio, uma massa polar que, não se sabe a razão, parou exatamente sobre a região a parece que se concentrou sobre a cidade. As conclusões eram alarmantes, porque, provavelmente, já passava das 10 horas da manhã e o disco solar era do tamanho de uma moeda, brilhante, frio,  distante. Se não há sol, se não há vida, não há esperança. Sem vida, sem esperança, esta a sensação de todos, sobretudo se assim permanecesse por muitos dias. Então, a reunião prosseguia em meio ao espanto e à impotência dos mui alarmados administradores, ou gestores, como se diz hoje, já não muito mais preocupados com os dinheiros que deixariam de receber do que com o destino das pessoas, sobretudo os deles próprios. E, por caminhos tortos, esses ilustres servidores do povo viram-se obrigados a se preocupar, ainda que sobressaltados, com o ignorado povo. Com este contratempo, por exemplo, uma boa parte dos pagamentos em dinheiro que estava programada para aquela manhã teria de ser adiado, com muito tato, para não despertar suspeitas, nem alarmar mais ainda os credores e o comércio da cidade. Boa parte da contabilidade pública ficava pelo meio do caminho. Um dos mais preocupados, por exemplo, sabia dos pagamentos que deveriam ser feitos às cinco empresas fantasmas contratadas, justo naquela manhã, e que renderiam aos poucos afortunados e íntimos da administração outra modesta propina, uma pequena contribuição eleitoral, exagerada pelos invejosos, que se agregaria a outras pequenas fortunas, e de pequena em pequena, já era uma grande fortuna que os amigos dividiriam entre um uísque e outro, porque mereciam. São fatos da vida política.  Se a névoa não cedesse, os bancos não abririam às 11 horas e o negócio poderia desandar, pondo a descoberto as outras operações com o caixa dois. Como um óbvio castelo de cartas, tudo poderia ruir, principalmente se algum intrometido resolvesse fuçar, ou algum interessado resolvesse protestar por falta de pagamento. Seria a névoa motivo para descobrirem tantas fatalidades? Que maçada: um acontecimento desta natureza a infernizar os planos cuidadosamente concebidos, uma verdadeira obra de arte contábil, que levou quase dois anos para se construir. Devia ter prêmio Nobel para quem consegue estas proezas matemáticas... E então, um acidente como este, põe tudo a perder. Não, a vida não é justa; logo agora!
            Isso o prefeito podia ler, sem muito esforço, no rosto angustiado de seu secretário; sabia ler o que se passava na alma do auxiliar que ali estava para o despacho, justamente para tratar daqueles dinheiros desviados das grandes verbas recebidas no dia anterior. Mordia os lábios, esfregava a testa, por causa de uma viagem temerária no meio da névoa, que ainda não era tão densa, não pôde ele deixar de estar presente à reunião. . Já se sabe que estas operações, tão corriqueiras na vida do país, precisam ter a aparência de completa lisura, por isso mesmo Sua Excelência, o prefeito, e seu secretário escolheram cuidadosamente os experientes e silenciosos colaboradores, senhores respeitáveis, vindos da capital, com larga experiência em falcatruas, sem deixar pistas. Para não haver suspeita, freqüentavam todos a mesma igreja, ouviam os mesmos cultos e era possível até que acreditassem no mesmo Deus, mas isto ainda teria de ser verificado, se alguém se importa com este detalhe banal.
            O incidente da névoa fora um desses acidentes que poderiam revelar certas operações delicadas com o dinheiro público.
            Mas não se pode dizer mal das criaturas que hoje nos governam, afinal de contas foram eleitos por nós, lá estão em nosso nome; fizeram jus ao voto que a população lhes outorgou e não é justo que fiquemos nós, criadores de casos e personagens desprezíveis, a enlamear-lhes a reputação. Se não temos provas claras e declaradas de suas desvirtudes, como, por exemplo, uma confissão assinada e registrada em cartório, é melhor calar-se. São pessoas que sacrificam suas horas e suas vidas para nos governar. O que fazemos nós pode ser produto da inveja do sucesso deles e se suas fortunas mais do que duplicaram em tão pouco tempo, é porque Deus os ama e não tens tu, infame leitor, o direito de suspeitar-lhes a dignidade, nem tu, desditado autor, de enlamear-lhes a honra. É que esses intelectuais são mesmo uns cretinos irresponsáveis!
            Até parece que a névoa está a encobrir a inteligência de quem lê e de quem escreve.
            Para ser sincero, no fundo, nada disso importava agora. O que importava era o silêncio à volta e em torno da cidade. Mais de uma vez, no meio do temor geral, alguém se levantava, dirigia-se à imensa janela da prefeitura, que se abria para a praça, e suspirava entre resignado e preocupado. Em resumo: ninguém tinha a menor ideia do que fazer, então nada se fazia, que não fosse conjecturar sobre o destino de cada um e de todos.
            Aos poucos, todos os outros, presentes à reunião, aproximaram-se da janela e viram a procissão de corpos emergindo da cerração, quais almas macabras arrastando correntes. Iam num desfile grotesco, espalhados pelas calçadas, tropeçando no meio-fio ou simplesmente deixando-se estar, imóveis, com o rosto para cima buscando a respiração que se ia tornando penosa quando o ar custava a vir. Então, pouco a pouco, o desfile improvável de almas assombradas foi chegando próximo do prédio da prefeitura. Em breve, todos se sentaram nas escadarias do edifício e ali permaneceram, calados, enquanto esperavam, não se sabe o quê. Era como se uma voz assim ordenasse, embora nenhuma voz se escutasse.
            Foram sentando-se nas escadarias do prédio, em curioso ritual, como uma fraternidade de desesperados, porém em silêncio. Muitos rezavam, outros tantos se abraçavam com temor e entre eles estava Lívia, abraçada ao próprio corpo, buscando por entre a névoa um rosto conhecido, alguém próximo, com quem mais pudesse dividir o espanto. Lívia acabara de chegar, com três outros passantes.
            Um cão aproximou-se dela, sentiu-lhe o cheiro lá do jeito que eles têm de reconhecer um amigo ou um inimigo e esperou a mão suave de Lívia sobre sua cabeça enorme. Acolheu de olhos cerrados o agrado. Na verdade, aquele carinho e algumas palavras docemente murmuradas ao ouvido do cão, foram suficientes para selar uma amizade eterna como só lá os cães sabem celebrar, talvez porque não nos contestem, mesmo se os magoamos. Deitou-se o cão aos pés de Lívia e é como se ela soubesse que estava protegida, defendida de todo mal. Um cão branco, com algumas pintas pretas em torno do olho esquerdo, dava-lhe a feição marota de cão sem dono. Talvez por isso se chamasse  bandido, ou pirata, mas nesse momento pouco importava o nome, importava o pelo macio e o jeito amigável com que se deitou sobre os pés de Lívia, sacudindo a cauda, esperando pelo carinho inevitável de sua nova dona, cujo aroma já guardava em sua arguta memória de cão sem pátria. Lívia era para ele todos os cheiros de um único olfato que jamais se repetira nos outros bípedes que conhecera. Isto,é claro, supondo que os cães pensassem e sentissem e soubessem que eram cães e que se expressassem como gente.
            Lívia procurou por entre as enevoadas fisionomias alguém que pudesse ser o dono dele, porém não aparecia pessoa alguma. Supôs então que estivesse perdido. Com o nevoeiro e a densidade do ar, era possível que o cão já não tivesse senso de direção e seu olfato estivesse irremediavelmente comprometido e com isso perdera o rumo de casa. Esta circunstância, que lhe pareceu lógica e razoável, serviu de justificativa para mais ainda quisesse bem ao animal que tão dócil parecia, que tão semelhante destino com ela dividia, e de seus olhos úmidos surgia uma cumplicidade de afetos. Você está como eu, não é? Não sabe para onde vai nem o que fazer. Vamos ficar juntos. Isto disse Lívia e provavelmente foi também isto que ouviu o cão, pois mesmo que não ouvisse era como se tivesse ouvido, pois abanou a cauda, lá do jeito que fazem os cães quando aprovam o humano a quem querem agradar e de quem não esperam um pontapé ou coisa parecida. Para eles, afeto e cumplicidade são a mesma coisa.
            Lívia abraçou-se ao cão e resolveu chamar-lhe “Argos”, como uma homenagem ao personagem de uma história, muito antiga, que lera, de cujo autor não se queria lembrar, infelizmente, não obstante soubesse que se tratava de uma história de viagem, em meio a alguns nevoeiros, feita por um certo Odisseus ou Ulisses. Lembrava-se de que o herói não conseguia retornar aos braços de sua Penélope, cujas virtudes compensavam a desonrada Helena e seu amante, um príncipe de Tróia. Lívia sofria, com aquele impossível retorno, no nevoeiro, a repetida nostalgia narrada a longos séculos por um cego ilustre.
            Mas não tem sido ingrato o autor dessas linhas que muito admira o poeta antigo e devota-lhe toda admiração e por isso o homenageia com esta breve lembrança.
E Argos ficou sendo chamado o cão. Talvez convenha ao leitor saber que também poderia ter sido ele chamado de “Pastor”, pois será quem guiará o povo da praça pelos caminhos da revelação, lá onde se encontra a solução deste mistério gasoso, se assim se pode dizer.
            Podia também chamar-se “Constante”, mas estas razões ficam para depois, para quando se homenagear um outro lendário escriba, chamado Saramago.
            Enquanto isso não vem à baila, basta ao leitor ver desenhar-se ante seus olhos nublados o vulto de Lívia e do cão Argos levantarem-se e irem ambos na direção da praia, já seguindo o povo que, numa decisão abrupta, resolvera caminhar em demanda do infindável mar.
            A assim lá vai andando a procissão, o cão Argos à frente, adiantando-se alguns metros e parando em seguida, virando a cara, com o focinho para cima, como se buscasse o ar que não vinha facilmente e farejando pressentimentos. Ao perceber a proximidade de Lívia, continua o passo, acelerando o caminho, semelhando tranquila guarda de um paciente cuidado de amor resignado.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

11º capítulo


            11
    livia e a mãe sentaram-se juntas no sofá da sala e assim permaneceram, mãos entrelaçadas, contemplando a cerração implacável embaçando a janela em frente. Nenhuma delas pronunciou qualquer palavra . Os relógios congelados indicavam sempre a mesma hora, as televisões, os aparelhos de rádios, até os vizinhos se recolheram em prudente silêncio. Não se pode saber quanto tempo assim permaneceram, uma vez que o único relógio funcionando era o da igreja matriz, na praça; assim diziam, e mesmo que fosse possível medir o tempo, as duas mulheres permaneceriam mudas, o que não significa incomunicabilidade. Ao contrário, ambas preferiam o silêncio e com isto já se dizia o essencial. Pela janela aberta, a bruma bailava branca branca branca, ácida, densa, opaca, impedindo a passagem dos sons, de modo que o mundo parecia uma caixa de vidro onde quase todos os ruídos eram abafados. A névoa penetrava pela janela da sala, recobria os móveis, tudo em se tornando difusa silhueta por dentro da pálida cerração. A sala invadida de palidez figurava um mundo absurdamente volátil. Um pouco depois, Lívia levantou-se, cerrou a janela e voltou para o sofá, sentou-se ao lado da mãe. Subitamente, agitou-se nervosa, inquieta, pôs-se a caminhar de um lado a para o outro: Mãe, tenho de sair, tenho de chegar ao trabalho Preciso saber o que está acontecendo. Surpreendida com a decisão, a mãe alarmou-se: que o acontecido era imprevisível, que podia ser perigoso, que isto era algum castigo, que todos vamos morrer, é o fim do mundo, que o pastor já diria se ali estivesse: o apocalipse está chegando, este mundo de pecados contra a Palavra está com seus dias contados. Só vão sobreviver os nossos, os de nossa igreja, eu vi, Deus falou comigo E você, filha, nunca se importou. Agora veja com os próprios olhos. Lívia tentou ser mais paciente e gentil. A mãe não tinha o que temer se permanecesse em casa, mesmo sozinha; porém ela devia sair, tinha de ver o que estava acontecendo com as pessoas, com as ruas, com a cidade, com a vida. Não havia telefone funcionando, nem internet, então só se podia saber de alguma coisa caso fosse pessoalmente. Vou até a Praça da Matriz e na prefeitura, lá, quem sabe, encontro alguém que possa dizer o que está acontecendo .Não tenha receio, mãezinha, eu sei  me cuidar. Nada demais vai me acontecer.
            Ignorou os elevadores, com medo de que a luz faltasse no meio da descida e ela ficasse presa, sem ninguém para acudir. Desceu, portanto, pelas escadas. Fê-lo cautelosamente, pelos quatro lances da escadaria, em meio ao ruço que invadia o prédio. Havia que desbravar os lanços da escada, sem poder enxergar com nitidez os degraus, mas valia a pena. Era preciso. Então, pé ante pé, bem calculadamente, Lívia alcançou o térreo, abriu a porta de vidro e mergulhou no imenso mar de brancas nuvens, ácidas, do que uma vez fora uma rua. Com os olhos ardendo, lacrimejando e com dificuldade de respiração, Lívia teimava em caminhar às cegas, em linha reta, no sentido da Praça, caminho que ela conhecia com precisão. Mesmo assim, muito cuidadosamente, Lívia desceu a rua e mal ouvia os carros passando: um ou outro, arranhando o asfalto. Um ou outro automóvel passava por ela, faróis acessos, bem devagar, sem que se pudesse quase ouvir o ruído dos pneus. Rodavam macios e discretos, sem destino certo, como se o motorista esperasse por algum sinal ou pista por onde seguir. Era antes um ruído abafado, como se os ouvidos estivessem entupidos de cerume. Na pele, a acidez da bruma dava a sensação de que lhe estavam arrancando os pelos com o desconforto de uma pinça cega. Lívia, embora com muito medo, caminhou por um tempo longo, guiada apenas pela intuição de seus passos, indo na direção da Praça da Matriz, onde esperava obter informações sobre o que se passava na cidade naquela manhã fatídica.
            Grande era o temor, mas grande também a vontade de sobreviver, de saber dos amigos, das pessoas conhecidas e, principalmente, de Rodrigo. O caminho de Lívia reproduzia a história de nossa espécie, acostumada a buscar a vida onde só existe a probabilidade da morte, mas sempre a vida triunfando em sua imortalidade coletiva. A vida, claro, da espécie, e não a vida do indivíduo, porque essa passa como um sopro. Não obstante, ela seguia cautelosamente, solitariamente, em busca de alguma resposta que lhe pudesse devolver a tranqüilidade, resposta que supunha estar na praça, nos relatos dos amigos de infortúnio, na comunidade dos habitantes deste imenso vazio branco, a bruma ácida na manhã. Lívia tinha certeza de que, havendo uma resposta para tudo isto, ela só poderia ser encontrada no meio dos outros, com os outros.
            Temia, sobretudo, cair numa espécie de vazio, de abismo, que a cerração escondia: um buraco sem fim, um abismo interminável, uma fratura no asfalto que a conduzisse para uma queda interminável. Era uma súbita sensação de pavor, como se, depois de cada passo, uma fenda se abrisse sob seus pés e ela mergulhasse num enorme buraco sem fim. Foi então que ouviu passos que caminhavam em sua direção, finalmente não estava sozinha. Alguém caminhava em sua direção, com os mesmos passos tateantes, vacilantes. Talvez não fosse uma pessoa apenas, mas duas, ou três, que os passos se misturavam, em quase secreta sincronia. Ao ouvi-los, porém, Lívia sentiu alguma coisa próxima da euforia ou de alívio. Sim, o medo agora podia ser compartilhado, não estava perdida. Apesar da névoa e da impossibilidade de vislumbrar seus parceiros de jornada, sabia que eram pessoas como as outras, em busca de alguma explicação e de algum sentido para tudo aquilo. É esse um destino nosso, dedicarmo-nos à decifração dos mistérios do mundo e pensar que tudo se resolve na posse de umas tantas dessas verdades impronunciáveis. É este sempre o vício da vaidade humana.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

10º capítulo


10
    quando padre luis despertou do sono místico, com um tremor no corpo e na alma, sequer pressentira a presença silenciosa das fiéis beatas que, aos poucos, iam ocupando os bancos da nave central, sem coragem de se aproximarem do sacerdote, reverenciado em pleno êxtase. Entraram cerimoniosamente, pisando de leve, para não perturbar a concentração, ou deveria dizer, o profundo misticismo do padre. Miravam, com olhos de alarmante incredulidade, o rosto aceso do sacerdote, parecendo seus trajes iluminados, brilhantes, como uma transfiguração extática. Uma suposta aura flutuava sobre sua cabeça, pelo menos é o que disseram as mulheres que juraram ter visto a luz flutuante sobre a sua cabeça. Ajoelhado, com o rosto voltado para cima, para a imagem do Senhor morto na cruz, Padre Luis parecia flutuar; e as crônicas da cidade haviam de registrar que, naquele dia tão absurdo, o corpo franzino do sacerdote efetivamente flutuou por sobre o altar; todas as beatas juraram ter visto e testemunhariam a quem quer que se dispusesse a ouvi-las.
            A maioria da Assembleia era composta de mulheres, cujos maridos, namorados, irmãos, pais ou alguém impronunciável estavam na labuta ou tentando chegar a ela, ou mesmo buscando mais informações que esclarecessem o mistério da névoa. Essas mulheres, a quem pertence a tarefa de orar, surpreendidas pelo êxtase místico do celebrante, ficaram a contemplar a cena como se fora um capítulo vivo do Novo Testamento, ou do Velho, que, para essa gente, não havia diferença, tudo era a voz sagrada. Nenhuma das beatas pronunciou qualquer palavra, nem era preciso, a cena falava por si mesma e todas mantinham a respiração suspensa, o corpo em ausência como se ali não estivessem, e logo depois estivessem, como uma intermitência que, por suposto, antecede a presença de Deus. Pois já não disse um poeta que Deus é um grande intervalo? E que se não é possível vê-Lo, senão se pode pressenti-lo.
            Padre Luis levantou-se penosamente, ainda vacilante em suas pernas dormentes, e pronunciou, solene, as palavras que abriam a cerimônia, embora não parecesse ser a voz dele, que era rouca e mais que chegava a cada um como fosse dita à beira do ouvido de cada uma das mulheres: louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.E as beatas, não mais do que duas dúzias, responderam emocionadas, quase em segredo: para sempre seja louvado. De braços abertos, como estava o Senhor, no alto, às suas costas, Padre Luis não conseguia pronunciar o restante do introito, sua voz tornou-se áspera e aguda, recusava-se a articular na garganta estreita e áspera uma frase completa, embora sua memória soubesse exatamente o que deveria ser dito. Então, neste dia estranho, com a névoa mais densa ainda dentro da Igreja de modo que apenas a silhueta do celebrante podia ser efetivamente vislumbrada, as beatas viram e juram que viram o sangue escorrendo da testa do padre enquanto seus olhos choravam as mesmas lágrimas de sangue que choraram tantos homens e mulheres antes de seus holocaustos. Dos trêmulos lábios, puderam as mulheres ouvir em seus ouvidos, e apenas para seus ouvidos, as palavras do padre: cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo rogai por nós, pecadores
            Antes do desmaio -- um baque surdo no chão frio do altar-- sua voz esganiçada proclamou, numa língua incompreensível para aquele povo, a ladainha: Redimisti nos domine, deus veritatis ,com a espuma descendo dos lábios cerrados e as mãos crispadas como garras de  uma ave de rapina. Por não saberem bem o que dissessem, a igreja toda reverberou Amen., anunciando o temor de todos, embora um frio percorresse a espinha e ninguém soubesse exatamente onde estava o fim desta cena.
            Eis senão quando, Padre Luis flutuou, de um lado para o outro, bem no meio da nave central da igreja. O corpo ao comprido, braços abertos em cruz, rosto pendente sobre o ombro esquerdo, uma figura de El Greco deslizava em meio à névoa sem que nada ou ninguém o sustentasse. Era apenas a flutuação oca de um corpo magro, pálidas faces, boca escancarada, um homem tentando respirar, que já não estava mais submetido à gravidade, mas ao imponderável.
            As beatas ajoelharam-se e toda a Igreja esparramou-se contrita pelo chão frio e úmido. 
            Era impossível saber as horas, nem lugar, nem quando, muito menos por quê. Quando tudo isto virar palavras repetidas nas bocas de cada um, possivelmente dirão que é mentira ou alguma piedosa crendice desse povo analfabeto que vive inventando lenda para distrair o turista, mas nós sabemos que foi tudo verdade, a mais lúcida verdade naquele meio-dia de triste agonia e não incomum desespero. Os prodígios aconteciam ante os olhos de todos, sem explicação, como convém aos prodígios.
            Uma canção de imprecisos versos espalhou-se pela igreja, um canto profundo e triste que podia comover até as pedras frias que vestiam os muros do convento onde fora construída a igreja.
            Enquanto flutuava, seguindo o ritmo do cântico, o corpo magro do Padre Luis prosseguia desafiando a gravidade, anunciava o prodígio e enchia de terror aquele povo simples, crédulo, que talvez não merecesse viver um enigma tão indecifrável. Ou talvez fosse tudo parte de uma trama que nossa razão ( pobre de nós) jamais poderia compreender. Tanto melhor, porque assim pode ser contada em um romance, afinal é para isto que servem os romances, não é mesmo? Para dar sentido ao sem sentido da realidade.

sábado, 5 de maio de 2012

9 ° capítulo


9    sentado à cabeceira da vasta mesa, como convém aos poderosos, visivelmente irritado, Sua Excelência solicitou maiores informações. Coube ao secretário de Governo e responsável pela segurança, com a solenidade cautelosa que estava a exigir a situação, expor, com a brevidade possível, a situação. Em resumo, fomos tomados por umas nuvens espessas, umas nuvens brancas que ardem quando se respira dentro delas, por isso mesmo as janelas devem permanecer fechadas e o povo recolhido em suas casas. O senhor prefeito quando veio para cá deve ter visto que só se chega aqui com os faróis dos carros bem acesos e assim mesmo dirigindo com muito cuidado Apesar disto, não foi registrado nenhum incidente. Parece que o povo preferiu trancar-se em casa. O rosto de prefeito deixou transparecer impaciência; um suspiro e um discreto crispar de dedos, um leve assovio de lábios semicerrados e olhos idem foram o suficiente para o secretário acelerar o relato, com mais objetividade e brevidade para não ofender a paciência do ilustre ouvinte. Pois, como ia dizendo, senhor prefeito, não temos informes precisos. Só conseguimos saber que ninguém entra nem sai da cidade, pelo menos desde as seis e quarenta e oito que é quanto marcam os relógios de todas as casas, menos o da matriz, que esse parece não ter parado e funciona regularmente, pelo menos até agora.  O prefeito contraditou: Mas afinal, alguém pode me informar o que se passa? Que tipo de coisa aconteceu de ontem para hoje, foi como Sua Excelência reagiu ao relato, sem esperar resposta plausível.Embora se saiba que a surpresa de uma excelência deve ser sempre tomada como hipérbole ou véspera de uma inamovível irritação que pode custar a cabeça de alguém. Mas isto é sempre a mesma coisa desde que o mundo é mundo.
            As informações, no entanto, prosseguiam em cascatas de más novidades, alarmantes todas. De todos os lados, surgiam histórias semelhantes, conforme chegavam à prefeitura pela voz dos informantes: pessoas envoltas em névoa, tateando pelas ruas; os postos de saúde e os hospitais repletos de mulheres; velhos e crianças com dificuldades respiratórias; os ônibus já não circulavam, os telefones, mudos; e ninguém entrava ou saia da cidade, embora nenhuma lei impedisse a circulação. Em resumo (como apreciava Sua Excelência), nem mesmo a base militar, instalada na cidade vizinha, conseguia saber com precisão o que ocorrera. Na verdade, a única coisa que se sabia com certeza era que o fenômeno se restringia a este município, a esta cidade, nenhuma outra região se apresentava com problema semelhante, muito ao contrário: o sol brilhava e o dia era esplêndido por todo o resto do país. A situação que se apresentava era absolutamente única, incompreensível e assustadora. E nem adiantava usar máscaras de oxigênio, como alguém sugeriu, porque a acidez da névoa corroia, em poucos minutos, os tubos de borracha; e a vítima sucumbia em míseros segundos.
            A cada minuto, mesmo sem os telefones operando, as autoridades constituídas procuravam pelo menos dar a entender que tudo estava sob controle, não obstante a imprecisão das orientações. Estavam em um teatro que exigia dos atores toda seriedade para enfrentar a gravidade do momento. Era preciso evitar alguma perturbação da ordem e, para isto, as forças policiais foram convocadas, como puderam, para um plano de emergência, que se mostraria frágil, caso fosse realmente necessário, até porque não havia plano de emergência algum para uma situação como esta. Como sempre afirmou a oposição, este governo era incompetente, incapaz e corrupto, portanto um desastre, portanto muito abaixo do imenso desafio que se fazia presente. Já ninguém esperava um acontecimento deste porte, de modo que, sem uma resposta que pudesse tranqüilizar a população, o governo optou pelo silêncio; o povo, pelo boato, e a oposição, pela denegação. Pelo silêncio, para evitar qualquer declaração desastrosa e, para enfrentar a boataria, era importante difundir a idéia de que o fenômeno climático que ocorria poderia ser passageiro, fruto do descontrole climático que passaria em breve e que precisávamos de tranquilidade.. Mas o boato, com a força da imaginação e a liberdade de julgamento, sem nenhum compromisso com a ciência ou os saberes instituídos, preferiu apostar numa interferência divina, um castigo, que somente com orações poderia ser debelado, conforme sustentavam os opositores, este governo é a maldição do anticristo. A custa de breves recados transmitidos oralmente, convocou-se o povo para as orações, nos templos de todas as religiões, com o beneplácito da prefeitura que mantinha certo controle sobre alguns líderes religiosos, à custa, claro, de benefícios financeiros, sempre negados com indignação e ameaça de excomunhão ou expurgo ou interdito ou anátema a quem ousasse levantar esta leviandade, embora o conforto com que viviam os beneficiários do governo fosse evidente. Neste ponto, o poder  é sempre muito eficiente, como, aliás, acontece a toda hora no país e quiçá no mundo, que isto de política é sempre um murmurar de coisas indignas e de troca de uns tantos favores, mesmo entre religiosos contidos em sua fé, mas não tanto. É uma regra atemporal, que vale para todas as latitudes conhecidas, quiçá desconhecidas também. Isto de políticas é sempre o fel da desumanidade misturado com cinismo, e um certo talento para fazer-se um santo em busca da salvação das almas penadas. Olha que este nevoeiro está mais dentro das pessoas que fora delas!
            No entanto, a vida estava paralisada já havia mais de cinco horas, conforme mostrava o relógio da matriz, cujos ponteiros só eram visíveis para quem subia ao topo de torre e de lá pudesse tatear os ditos ponteiros, deduzindo-lhes as horas. Tarefa, aliás, que coube ao Manuelzinho, menino de prováveis quatorze anos inexatos, franzino e ágil, que subiu até o topo da matriz, na torre do relógio, e de lá de cima berrava as horas para quem, no meio do nevoeiro, pudesse e quisesse ouvir e com isso ganhou destaque nas histórias que se contarão depois. Desse modo, tornou-se personagem importante no enredo deste dia, que seria contado pelos anos vindouros, até quando fosse ele um velho matreiro, sentado na praça, ganhando uns trocados dos turistas que apreciavam ouvir estas lendas, com toda certeza inventadas por um velho doido, mas simpático. E que cidade não tem seus velhos loucos e patuscos? Ora, quem acreditaria numa cidade afogada por um nevoeiro? Só por invenções da loucura. Só não sabiam eles que a loucura é apenas outra maneira de ter razão, ou de se antecipar à própria razão. Mas sabemos nós que os loucos e somente os loucos dizem a verdade.
            Isso antes de os relógios pararem definitivamente, mesmo o relógio da torre que, às dez horas e vinte e três minutos, cessou de girar, situação que o povo imediatamente considerou mais uma prova  da maldição que caíra sobre o município.
            Terminada a reunião, reuniram-se os senhores secretários com o prefeito, em seu gabinete, para, secretamente, considerarem a situação “periclitante”, conforme mencionou Sua Excelência, já com certo fastio, porém alguma inquietação, sabedor que era da responsabilidade dele solucionar o problema provavelmente insolúvel.
            Da janela do gabinete, podia-se ver a massa da branca nuvem envolvendo toda a praça. Já não se podia enxergar o topo das árvores, porém os milhares de vultos humanos, deslizando no meio da névoa, iam ocupando os arredores do prédio e, como se obedecessem a um comando invisível, acercavam-se uns dos outros em surdas conversações na tentativa de compreender o incompreensível. Alguns rezavam, ajoelhados, nos degraus da Matriz, outros se abraçavam comovidamente; poder-se-ia dizer, se fosse o caso, que se tratava de uma cena de cinema antigo e romântico, tal o afeto com que se encerravam uns nos braços dos outros. Alguns ainda, impacientes, andavam de um lado para o outro, tensos, anunciando algum desastre inevitável ou terrível desgraça. Nem a pequena auréola solar que se esforçava por trazer um pouco de luminosidade pálida e branca fora capaz de infundir naquelas pessoas alguma esperança.
            Visto assim, de longe, aqueles vultos humanos, de mãos dadas, corpo com corpo, abraçados e protegidos pelo peso de seus corpos, pareciam traduzir o amor fraterno como um sentimento que nos é capaz de unir e tornar suportável o sofrimento, por mais incompreensível. A ironia permite dizer que poderiam ser, afinal, felizes por se amarem tanto, não fosse isto o resultado de um temor devastador. Afinal, é do medo e do terror que aprendemos a vida. Aquele povo tinha de viver com sua própria vontade e, se possível, com sua perdida alegria.
            Não se ouvia tanto falar em fim do mundo? Não eram pregações dos pastores, também do padre Luis, cujas vozes erguiam-se corajosas, avisando os fiéis da iminência do apocalipse, da destruição da cidade, como acontecera a tantas outras, dito no Velho Testamento? Não eram as escatologias coisas desse mundo? O nevoeiro estranho e silencioso bem poderia ser o começo da profecia que enchia de terror os sonhos daqueles sofridos moradores.
            O povo nas ruas, nas praças, nas avenidas ainda não era tão numeroso, porém era suficiente para demonstrar a inquietação de suas almas. Quantas coisas ficariam pelo caminho se estivesse o mundo por se acabar? Quantas histórias interrompidas, amores não declarados, mentiras por esclarecer, verdades por dizer, filhos sem futuro, destinos brutalmente negados não em fogo ou em água, como já acontecera, mas numa prosaica, estúpida névoa branca que não deixava respirar direito, a arder nos olhos. Nem sequer podia-se ter o consolo da uma explicação racional. Ah, sim, a vida é sempre fantástica quando se tem de enfrentar o improvável.
            Ai que aquilo que somos (e somos o que não somos, e o que nos é negado), está sempre adiante de nós mesmos, sempre nos esperando para ser. E agora já não poderemos mais ser, porque este lugar, onde está quem somos, não mais existirá, e não se pode ser algo sem um lugar. Pode-se chamar a isto de vida? Ou de morte?
            A que estranhos mistérios pode conduzir um simples nevoeiro numa cidade qualquer! Quantos desafios a enfrentar para se saber o que é, justamente partindo da escuridão de uma névoa.
            Os dias deverão se arrastar lentamente, na fluidez da bruma. Nada parecia indicar o fim do nevoeiro, se seria naquela noite ( quando chegasse) ou talvez no fim da tarde. Seria, de todo modo, aterrador viver na escuridão da noite cercado pela névoa, com medo, com fome, sem poder vislumbrar as ruas e as esquinas. Havia de ser horrível perder-se no mundo abafado, escuro, sem poder ouvir uma notícia, uma nota, um alento, só o mar, desfolhando-se em ondas, na praia.
            Mas havia de ter uma razão, um lugar de onde tudo isto vinha, um lugar talvez não tão longe daqui. Talvez tão próximo que sequer podíamos ver.