“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sexta-feira, 8 de junho de 2012

14º capítulo


14
    afinal, conseguiram OS dois alcançar a larga avenida que os conduzirá até a Praça da Matriz onde esperam obter mais notícias sobre aquele dia fatídico. José Inácio e o velho Antonio tateavam pelas paredes, esbarravam em postes e árvores, dois trôpegos bêbados e quase cegos, rompendo a cerração, como se o caminhar fosse uma faca só lâmina, cortando a névoa densa que se repartia em dois para logo em seguida recompor-se em sua integridade atrevida. Como cegos que vão para o abismo, como aqui já foi dito, os homens mais pareciam assombrações, porque seus corpos não eram delineados, eram antes duas massas incorpóreas, tateando com os braços à frente do corpo e quatro olhos inúteis tentando enxergar através da fumaça. Cegos, não eram, pois, muito menos algum Tirésias que sabia dizer coisas incômodas para quem se supõe a salvo das culpas, mas eram mesmo dois amigos solitários desafiando o desconhecido em nome da sobrevivência e da irritante sina da inquietude humana.
            Que poderiam fazer esses desgarrados no meio da neblina? Conversariam sobre as causas do estranho acontecimento, mas sem poderem expressar-se como se expressava, por exemplo, o comandante da base, isto é, com terminologia científica, utilizando palavras incompreensíveis,  que os deixariam apreensivos e mais apavorados ainda se pudessem ouvi-las e entendê-las. Também de nada lhes adiantaria os nomes em inglês com que o comandante ilustrava seu conhecimento. Anunciava estes pareceres por meio de bilhetes trocados nos limites da cidade, uma vez que todas as comunicações estavam interrompidas e as ruas pareciam um cemitério de pessoas vivas cujas vozes eram cada vez mais inaudíveis, conforme ia avançando a tarde. E se por ventura pudessem ouvir os termos em que foram lavradas as razões e as causas, também de muito pouco serviria pelo simples motivo de que, afinal de contas, o comandante não conseguia explicar o que sucedera com a atmosfera e nem quando levantaria o ruço. José Inácio e o velho Antonio tinham explicações mais modestas, sem os nomes complicados que o comandante usava. Suas explicações se baseavam nas histórias contadas na beira do cais, no passado, e na intuição escatológica, quer dizer: no sentimento que ambos compartilhavam de que se tratava de uma intervenção maligna, obviamente uma punição por tantos desmandos e pecados cometidos pelo povo. Mas tu achas mesmo que Deus pune a todos, que não tem gente que está sofrendo sem merecer? A pergunta de seu Antonio trazia de volta as cidades destruídas que na Bíblia se contavam, como Sodoma e Gomorra, e tantas outras com que o Padre Luis ameaça os hereges. É, seu Antonio, o senhor pode ter razão. Mas vai entender o querer de Nosso Senhor? Estas nuvens ainda estão claras porque o sol está de fora, mas logo mais, vamos ter as trevas, igual o pastor leu uma vez no culto deles lá, na igreja que minha mãe freqüenta. Num ponto concordavam: só havia uma causa para o estranho fenômeno, até agora inexplicável: a ira do Senhor estava entre o povo, por conta de nossos pecados, que são muitos. Explicação aceitável, porque sustentada pelos milênios passados, depois de tantas cidades terem sofrido o mesmo destino sem possível remorso. E quando Deus pune não quer saber se há inocentes, e se algum houvesse, é possível que Ele suspendesse a pena. Mesmo isto já ocorreu, quando Lhe disseram que havia pelo menos um inocente numa cidade a ser punida. Não adiantou, o fato é que todos se tornaram culpados. Foi assim nas cidades que viraram cinzas. A gente só não tem o cheiro de enxofre, mas só por enquanto, isto ajuizou José Inácio que de religião provava todas, de todas tirava seu pitéu. Queria se garantir de todas as maneiras de tratar com Deus: as rezas no latinório do Padre Luis, a fúria evangélica do pastor Luciano, a benzedeira que uma vez lhe curara de uma espinha de peixe no pé, os atabaques do candomblé na ponta do caís, onde as putas iam pedir proteção aos orixás, porque o trabalho delas é o prazer dos homens, mas só elas sabem quanto isto lhes custa. Já seu Antonio, português de boa cepa, não admitia as licenciosidades do amigo; censurava-lhe a irreverência e dizia que bem podia ser estas religiões falsas a causa da ira de Deus e do nevoeiro. Que para ele, só havia a igreja de seus pais e dos pais de seus pais, cuja cruz se estampava nas caravelas que inventaram este país e que até por esta cidade andaram. .Não acredito nisso, seu Antonio. Deus não vai punir uma cidade inteira porque tem gente passando de uma religião para outra...A gente só quer se garantir com um lugar aquecido para quando o inverno chegar. Não dizem que a morte é fria como o inverno? Então, a morte bem pode ser um lugar como este que estamos vendo.
            Seu Antonio permaneceu quieto, interrompendo a caminhada vacilante. Olhos para cima, provavelmente com nostalgia do azul, ajuizou solene: Seu José Inácio, isto são mistérios que estão longe de nosso bico. Como todo mundo sabe, nós só vamos pagar a conta mais amarga, que é como sempre foi: os pecados são dos que têm, mas as  penas ficam para quem nada tem.  Já não se disse, na minha terra, que nós somos a vida dos outros e morte de nossas próprias vidas? Pois então.
            E em silêncio, de mãos cerradas, chegaram à praça da matriz, cujo relógio marcava dez horas, desde sempre, ou desde quando o nevoeiro começara.
            Esperavam encontrar uma multidão, reunida em busca de alguma explicação, mas tudo estava já deserto. Permaneceram no centro da praça, de frente para a Igreja, que ainda estava fechada, mas podiam-se ouvir vozes lá dentro. Vozes sussurrantes, recitando vagamente palavras ritmadas, como um estranho coral. Tateantecaultelosos, os dois empurraram a porta principal. Não conseguiram abrir, estava emperrada. Buscaram então a porta lateral, por onde entraram devagar, arregalando os olhos para poderem enxergar por entre as brumas e as lágrimas ardentes que seus olhos marejavam, não de emoção ou temor, mas por conta da acidez da névoa. Se o coração acelerava, foi por conta do medo, do misterioso temor do que iam, por ventura, encontrar ou ver.
            Os dois andarilhos ficaram fascinados e paralisados de temor e reverência.Viram a assembleia no instante em que o celebrante, Padre Luis, flutuava pelo meio da nave central, a dois metros do chão, braços abertos, rosto curvado sobre o peito, crucificado em pleno ar , enquanto as beatas, esparramadas no chão úmido, clamavam em êxtase Aleluia, Aleluia  em meio a uma estranha melodia.
            José Inácio e seu Antonio ajoelharam-se, persignaram-se, de olhos acesos, rostos pálidos, corpos paralisados ante a cena inacreditável. Viram os prodígios no dia dos prodígios.

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