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afinal, conseguiram OS dois alcançar a larga avenida que
os conduzirá até a Praça da Matriz onde esperam obter mais notícias sobre
aquele dia fatídico. José Inácio e o velho Antonio tateavam pelas paredes,
esbarravam em postes e árvores, dois trôpegos bêbados e quase cegos, rompendo a
cerração, como se o caminhar fosse uma faca só lâmina, cortando a névoa densa
que se repartia em dois para logo em seguida recompor-se em sua integridade
atrevida. Como cegos que vão para o abismo, como aqui já foi dito, os homens
mais pareciam assombrações, porque seus corpos não eram delineados, eram antes
duas massas incorpóreas, tateando com os braços à frente do corpo e quatro
olhos inúteis tentando enxergar através da fumaça. Cegos, não eram, pois, muito
menos algum Tirésias que sabia dizer coisas incômodas para quem se supõe a
salvo das culpas, mas eram mesmo dois amigos solitários desafiando o
desconhecido em nome da sobrevivência e da irritante sina da inquietude humana.
Que poderiam fazer esses desgarrados
no meio da neblina? Conversariam sobre as causas do estranho acontecimento, mas
sem poderem expressar-se como se expressava, por exemplo, o comandante da base,
isto é, com terminologia científica, utilizando palavras incompreensíveis, que os deixariam apreensivos e mais
apavorados ainda se pudessem ouvi-las e entendê-las. Também de nada lhes adiantaria
os nomes em inglês com que o comandante ilustrava seu conhecimento. Anunciava
estes pareceres por meio de bilhetes trocados nos limites da cidade, uma vez
que todas as comunicações estavam interrompidas e as ruas pareciam um cemitério
de pessoas vivas cujas vozes eram cada vez mais inaudíveis, conforme ia
avançando a tarde. E se por ventura pudessem ouvir os termos em que foram
lavradas as razões e as causas, também de muito pouco serviria pelo simples
motivo de que, afinal de contas, o comandante não conseguia explicar o que
sucedera com a atmosfera e nem quando levantaria o ruço. José Inácio e o velho
Antonio tinham explicações mais modestas, sem os nomes complicados que o
comandante usava. Suas explicações se baseavam nas histórias contadas na beira
do cais, no passado, e na intuição escatológica, quer dizer: no sentimento que
ambos compartilhavam de que se tratava de uma intervenção maligna, obviamente
uma punição por tantos desmandos e pecados cometidos pelo povo. Mas tu achas mesmo que Deus pune a todos,
que não tem gente que está sofrendo sem merecer? A pergunta de seu Antonio
trazia de volta as cidades destruídas que na Bíblia se contavam, como Sodoma e
Gomorra, e tantas outras com que o Padre Luis ameaça os hereges. É, seu Antonio, o senhor pode ter razão. Mas
vai entender o querer de Nosso Senhor? Estas nuvens ainda estão claras porque o
sol está de fora, mas logo mais, vamos ter as trevas, igual o pastor leu uma
vez no culto deles lá, na igreja que minha mãe freqüenta. Num ponto
concordavam: só havia uma causa para o estranho fenômeno, até agora
inexplicável: a ira do Senhor estava entre o povo, por conta de nossos pecados,
que são muitos. Explicação aceitável, porque sustentada pelos milênios
passados, depois de tantas cidades terem sofrido o mesmo destino sem possível
remorso. E quando Deus pune não quer saber se há inocentes, e se algum
houvesse, é possível que Ele suspendesse a pena. Mesmo isto já ocorreu, quando
Lhe disseram que havia pelo menos um inocente numa cidade a ser punida. Não
adiantou, o fato é que todos se tornaram culpados. Foi assim nas cidades que viraram cinzas. A gente só não tem o cheiro
de enxofre, mas só por enquanto, isto ajuizou José Inácio que de religião
provava todas, de todas tirava seu pitéu. Queria se garantir de todas as
maneiras de tratar com Deus: as rezas no latinório do Padre Luis, a fúria
evangélica do pastor Luciano, a benzedeira que uma vez lhe curara de uma
espinha de peixe no pé, os atabaques do candomblé na ponta do caís, onde as
putas iam pedir proteção aos orixás, porque o trabalho delas é o prazer dos
homens, mas só elas sabem quanto isto lhes custa. Já seu Antonio, português de
boa cepa, não admitia as licenciosidades do amigo; censurava-lhe a irreverência
e dizia que bem podia ser estas religiões falsas a causa da ira de Deus e do
nevoeiro. Que para ele, só havia a igreja de seus pais e dos pais de seus pais,
cuja cruz se estampava nas caravelas que inventaram este país e que até por
esta cidade andaram. .Não acredito nisso,
seu Antonio. Deus não vai punir uma cidade inteira porque tem gente passando de
uma religião para outra...A gente só quer se garantir com um lugar aquecido
para quando o inverno chegar. Não dizem que a morte é fria como o inverno?
Então, a morte bem pode ser um lugar como este que estamos vendo.
Seu Antonio permaneceu quieto,
interrompendo a caminhada vacilante. Olhos para cima, provavelmente com
nostalgia do azul, ajuizou solene: Seu
José Inácio, isto são mistérios que estão longe de nosso bico. Como todo mundo
sabe, nós só vamos pagar a conta mais amarga, que é como sempre foi: os pecados
são dos que têm, mas as penas ficam para
quem nada tem. Já não se disse, na minha terra, que nós somos a vida dos outros e
morte de nossas próprias vidas? Pois então.
E
em silêncio, de mãos cerradas, chegaram à praça da matriz, cujo relógio marcava
dez horas, desde sempre, ou desde quando o nevoeiro começara.
Esperavam encontrar uma multidão,
reunida em busca de alguma explicação, mas tudo estava já deserto. Permaneceram
no centro da praça, de frente para a Igreja, que ainda estava fechada, mas
podiam-se ouvir vozes lá dentro. Vozes sussurrantes, recitando vagamente
palavras ritmadas, como um estranho coral. Tateantecaultelosos, os dois
empurraram a porta principal. Não conseguiram abrir, estava emperrada. Buscaram
então a porta lateral, por onde entraram devagar, arregalando os olhos para
poderem enxergar por entre as brumas e as lágrimas ardentes que seus olhos
marejavam, não de emoção ou temor, mas por conta da acidez da névoa. Se o
coração acelerava, foi por conta do medo, do misterioso temor do que iam, por
ventura, encontrar ou ver.
Os dois andarilhos ficaram
fascinados e paralisados de temor e reverência.Viram a assembleia no instante
em que o celebrante, Padre Luis, flutuava pelo meio da nave central, a dois
metros do chão, braços abertos, rosto curvado sobre o peito, crucificado em
pleno ar , enquanto as beatas, esparramadas no chão úmido, clamavam em êxtase Aleluia ,
Aleluia em meio a uma estranha
melodia.
José
Inácio e seu Antonio ajoelharam-se, persignaram-se, de olhos acesos, rostos
pálidos, corpos paralisados ante a cena inacreditável. Viram os prodígios no
dia dos prodígios.
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