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afinal, alguém pode me dizer que horas são, há quanto tempo estamos nesta conversa mole? Sua excelência, o prefeito,
enfim, percebeu a gravidade da situação, com todas as suas consequências. Os
relatos que chegavam, embora precários, davam conta de que a cidade estava em
pânico: os serviços públicos entraram em colapso, os telefones ainda não
funcionavam e a companhia telefônica não tinha a menor ideia do que fazer para
restaurar as linhas. Do mesmo modo, as escolas não abriram, tendo em vista que
nem professores nem alunos conseguiram chegar a seus destinos. Com as
comunicações em pane, nada se podia fazer, só mesmo esperar e rezar para a
cerração ceder e o sol iluminar a paisagem outra vez, restaurando a vida. Os
poucos funcionários que conseguiram chegar à prefeitura informavam que seus
setores fecharam, até os bombeiros não tinham como atender os chamados feitos por
pessoas que conseguiam chegar até o quartel central, tateando por entre a
névoa, em busca de ajuda. O mais velho de todos os auxiliares do prefeito
atual, aliás um ex-prefeito, lembrou-se de que, há mais de 50 anos , também
ocorrera um fenômeno parecido, mas de menor intensidade e que desaparecera em
algumas horas e muitas orações, porém desta vez tudo era muito mais grave e
estranho, inclusive porque, segundo se sabia, o fenômeno era restrito a esta
cidade e não as outras. Nas cidades vizinhas, o sol brilhava e as pessoas
acotovelavam-se nos limites dos municípios para ver a barreira de nuvens,
separando um lugar do outro, como uma parede de algodão, que as assombrava. Era
uma densa parede branca, espessa, impedindo a passagem de qualquer coisa, até
mesmo dos sons. Quem quer que tentasse ouvir alguma voz do outro lado, o que
ouvia era um grunhido estranho e surdo. Prefeito,
parece que estamos encerrados numa masmorra de nuvens ácidas, densas, como um
cobertor de algodão. Ninguém entra, ninguém sai daqui. Foi a informação
prestada por um assustado servidor que acabara de vir de casa na estrada, e
entrara na sala de reuniões. Vinha testemunhar que, nas cidades vizinhas, as
pessoas se reuniam para verem uma assombração: a parede de cerração espessa, a
névoa pesada, dividindo a paisagem em duas partes: uma, ensolarada e azul; a
outra, branca e cinzenta e ácida
As informações que
precariamente chegavam, inclusive as opiniões de alguns oficiais da marinha que
orientavam os voos da base naval vizinha à cidade, davam conta de que, na noite
anterior ao nevoeiro, tinha havido um formação súbita de massa de ar quente,
uma convecção, nos termos técnicos, que se chocara com outra massa de ar frio,
extremamente frio, uma massa polar que, não se sabe a razão, parou exatamente
sobre a região a parece que se concentrou sobre a cidade. As conclusões eram
alarmantes, porque, provavelmente, já passava das 10 horas da manhã e o disco
solar era do tamanho de uma moeda, brilhante, frio, distante. Se não há sol, se não há vida, não
há esperança. Sem vida, sem esperança, esta a sensação de todos, sobretudo se
assim permanecesse por muitos dias. Então, a reunião prosseguia em meio ao
espanto e à impotência dos mui alarmados administradores, ou gestores, como se
diz hoje, já não muito mais preocupados com os dinheiros que deixariam de
receber do que com o destino das pessoas, sobretudo os deles próprios. E, por
caminhos tortos, esses ilustres servidores do povo viram-se obrigados a se
preocupar, ainda que sobressaltados, com o ignorado povo. Com este contratempo,
por exemplo, uma boa parte dos pagamentos em dinheiro que estava programada
para aquela manhã teria de ser adiado, com muito tato, para não despertar
suspeitas, nem alarmar mais ainda os credores e o comércio da cidade. Boa parte
da contabilidade pública ficava pelo meio do caminho. Um dos mais preocupados,
por exemplo, sabia dos pagamentos que deveriam ser feitos às cinco empresas
fantasmas contratadas, justo naquela manhã, e que renderiam aos poucos
afortunados e íntimos da administração outra modesta propina, uma pequena
contribuição eleitoral, exagerada pelos invejosos, que se agregaria a outras
pequenas fortunas, e de pequena em pequena, já era uma grande fortuna que os
amigos dividiriam entre um uísque e outro, porque mereciam. São fatos da vida
política. Se a névoa não cedesse, os
bancos não abririam às 11 horas e o negócio poderia desandar, pondo a
descoberto as outras operações com o caixa dois. Como um óbvio castelo de
cartas, tudo poderia ruir, principalmente se algum intrometido resolvesse
fuçar, ou algum interessado resolvesse protestar por falta de pagamento. Seria
a névoa motivo para descobrirem tantas fatalidades? Que maçada: um
acontecimento desta natureza a infernizar os planos cuidadosamente concebidos,
uma verdadeira obra de arte contábil, que levou quase dois anos para se
construir. Devia ter prêmio Nobel para quem consegue estas proezas
matemáticas... E então, um acidente como este, põe tudo a perder. Não, a vida
não é justa; logo agora!
Isso o prefeito podia ler, sem muito esforço, no rosto
angustiado de seu secretário; sabia ler o que se passava na alma do auxiliar
que ali estava para o despacho, justamente para tratar daqueles dinheiros
desviados das grandes verbas recebidas no dia anterior. Mordia os lábios,
esfregava a testa, por causa de uma viagem temerária no meio da névoa, que
ainda não era tão densa, não pôde ele deixar de estar presente à reunião. . Já
se sabe que estas operações, tão corriqueiras na vida do país, precisam ter a
aparência de completa lisura, por isso mesmo Sua Excelência, o prefeito, e seu
secretário escolheram cuidadosamente os experientes e silenciosos
colaboradores, senhores respeitáveis, vindos da capital, com larga experiência
em falcatruas, sem deixar pistas. Para não haver suspeita, freqüentavam todos a
mesma igreja, ouviam os mesmos cultos e era possível até que acreditassem no
mesmo Deus, mas isto ainda teria de ser verificado, se alguém se importa com
este detalhe banal.
O incidente da névoa fora um desses acidentes que poderiam
revelar certas operações delicadas com o dinheiro público.
Mas não se pode dizer mal das criaturas que hoje nos
governam, afinal de contas foram eleitos por nós, lá estão em nosso nome;
fizeram jus ao voto que a população lhes outorgou e não é justo que fiquemos
nós, criadores de casos e personagens desprezíveis, a enlamear-lhes a
reputação. Se não temos provas claras e declaradas de suas desvirtudes, como,
por exemplo, uma confissão assinada e registrada em cartório, é melhor
calar-se. São pessoas que sacrificam suas horas e suas vidas para nos governar.
O que fazemos nós pode ser produto da inveja do sucesso deles e se suas
fortunas mais do que duplicaram em tão pouco tempo, é porque Deus os ama e não
tens tu, infame leitor, o direito de suspeitar-lhes a dignidade, nem tu,
desditado autor, de enlamear-lhes a honra. É que esses intelectuais são mesmo
uns cretinos irresponsáveis!
Até parece que a névoa está a encobrir a inteligência de
quem lê e de quem escreve.
Para ser sincero, no fundo, nada disso importava agora. O
que importava era o silêncio à volta e em torno da cidade. Mais de uma vez, no
meio do temor geral, alguém se levantava, dirigia-se à imensa janela da
prefeitura, que se abria para a praça, e suspirava entre resignado e
preocupado. Em resumo: ninguém tinha a menor ideia do que fazer, então nada se
fazia, que não fosse conjecturar sobre o destino de cada um e de todos.
Aos poucos, todos os outros, presentes à reunião,
aproximaram-se da janela e viram a procissão de corpos emergindo da cerração,
quais almas macabras arrastando correntes. Iam num desfile grotesco, espalhados
pelas calçadas, tropeçando no meio-fio ou simplesmente deixando-se estar,
imóveis, com o rosto para cima buscando a respiração que se ia tornando penosa
quando o ar custava a vir. Então, pouco a pouco, o desfile improvável de almas
assombradas foi chegando próximo do prédio da prefeitura. Em breve, todos se
sentaram nas escadarias do edifício e ali permaneceram, calados, enquanto
esperavam, não se sabe o quê. Era como se uma voz assim ordenasse, embora
nenhuma voz se escutasse.
Foram sentando-se nas escadarias do prédio, em curioso
ritual, como uma fraternidade de desesperados, porém em silêncio. Muitos
rezavam, outros tantos se abraçavam com temor e entre eles estava Lívia,
abraçada ao próprio corpo, buscando por entre a névoa um rosto conhecido,
alguém próximo, com quem mais pudesse dividir o espanto. Lívia acabara de
chegar, com três outros passantes.
Um cão aproximou-se dela, sentiu-lhe o cheiro lá do jeito
que eles têm de reconhecer um amigo ou um inimigo e esperou a mão suave de
Lívia sobre sua cabeça enorme. Acolheu de olhos cerrados o agrado. Na verdade,
aquele carinho e algumas palavras docemente murmuradas ao ouvido do cão, foram
suficientes para selar uma amizade eterna como só lá os cães sabem celebrar,
talvez porque não nos contestem, mesmo se os magoamos. Deitou-se o cão aos pés
de Lívia e é como se ela soubesse que estava protegida, defendida de todo mal.
Um cão branco, com algumas pintas pretas em torno do olho esquerdo, dava-lhe a
feição marota de cão sem dono. Talvez por isso se chamasse bandido, ou pirata, mas nesse momento pouco
importava o nome, importava o pelo macio e o jeito amigável com que se deitou
sobre os pés de Lívia, sacudindo a cauda, esperando pelo carinho inevitável de
sua nova dona, cujo aroma já guardava em sua arguta memória de cão sem pátria.
Lívia era para ele todos os cheiros de um único olfato que jamais se repetira
nos outros bípedes que conhecera. Isto,é claro, supondo que os cães pensassem e
sentissem e soubessem que eram cães e que se expressassem como gente.
Lívia procurou por entre as enevoadas fisionomias alguém
que pudesse ser o dono dele, porém não aparecia pessoa alguma. Supôs então que
estivesse perdido. Com o nevoeiro e a densidade do ar, era possível que o cão
já não tivesse senso de direção e seu olfato estivesse irremediavelmente
comprometido e com isso perdera o rumo de casa. Esta circunstância, que lhe
pareceu lógica e razoável, serviu de justificativa para mais ainda quisesse bem
ao animal que tão dócil parecia, que tão semelhante destino com ela dividia, e
de seus olhos úmidos surgia uma cumplicidade de afetos. Você está como eu, não é? Não sabe para onde vai nem o que fazer. Vamos
ficar juntos. Isto disse Lívia e provavelmente foi também isto que ouviu o
cão, pois mesmo que não ouvisse era como se tivesse ouvido, pois abanou a
cauda, lá do jeito que fazem os cães quando aprovam o humano a quem querem
agradar e de quem não esperam um pontapé ou coisa parecida. Para eles, afeto e
cumplicidade são a mesma coisa.
Lívia abraçou-se ao cão e resolveu chamar-lhe “Argos”,
como uma homenagem ao personagem de uma história, muito antiga, que lera, de
cujo autor não se queria lembrar, infelizmente, não obstante soubesse que se
tratava de uma história de viagem, em meio a alguns nevoeiros, feita por um
certo Odisseus ou Ulisses. Lembrava-se de que o herói não conseguia retornar
aos braços de sua Penélope, cujas virtudes compensavam a desonrada Helena e seu
amante, um príncipe de Tróia. Lívia sofria, com aquele impossível retorno, no
nevoeiro, a repetida nostalgia narrada a longos séculos por um cego ilustre.
Mas não tem sido ingrato o autor dessas linhas que muito
admira o poeta antigo e devota-lhe toda admiração e por isso o homenageia com
esta breve lembrança.
E Argos ficou
sendo chamado o cão. Talvez convenha ao leitor saber que também poderia ter
sido ele chamado de “Pastor”, pois será quem guiará o povo da praça pelos caminhos
da revelação, lá onde se encontra a solução deste mistério gasoso, se assim se
pode dizer.
Podia também chamar-se “Constante”, mas estas razões
ficam para depois, para quando se homenagear um outro lendário escriba, chamado
Saramago.
Enquanto isso não vem à baila, basta ao leitor ver
desenhar-se ante seus olhos nublados o vulto de Lívia e do cão Argos
levantarem-se e irem ambos na direção da praia, já seguindo o povo que, numa
decisão abrupta, resolvera caminhar em demanda do infindável mar.
A assim lá vai andando a procissão, o cão Argos à frente,
adiantando-se alguns metros e parando em seguida, virando a cara, com o focinho
para cima, como se buscasse o ar que não vinha facilmente e farejando
pressentimentos. Ao perceber a proximidade de Lívia, continua o passo,
acelerando o caminho, semelhando tranquila guarda de um paciente cuidado de
amor resignado.