“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

segunda-feira, 28 de maio de 2012

12º capítulo


12
    afinal, alguém pode me dizer que horas são, há quanto tempo estamos nesta conversa mole? Sua excelência, o prefeito, enfim, percebeu a gravidade da situação, com todas as suas consequências. Os relatos que chegavam, embora precários, davam conta de que a cidade estava em pânico: os serviços públicos entraram em colapso, os telefones ainda não funcionavam e a companhia telefônica não tinha a menor ideia do que fazer para restaurar as linhas. Do mesmo modo, as escolas não abriram, tendo em vista que nem professores nem alunos conseguiram chegar a seus destinos. Com as comunicações em pane, nada se podia fazer, só mesmo esperar e rezar para a cerração ceder e o sol iluminar a paisagem outra vez, restaurando a vida. Os poucos funcionários que conseguiram chegar à prefeitura informavam que seus setores fecharam, até os bombeiros não tinham como atender os chamados feitos por pessoas que conseguiam chegar até o quartel central, tateando por entre a névoa, em busca de ajuda. O mais velho de todos os auxiliares do prefeito atual, aliás um ex-prefeito, lembrou-se de que, há mais de 50 anos , também ocorrera um fenômeno parecido, mas de menor intensidade e que desaparecera em algumas horas e muitas orações, porém desta vez tudo era muito mais grave e estranho, inclusive porque, segundo se sabia, o fenômeno era restrito a esta cidade e não as outras. Nas cidades vizinhas, o sol brilhava e as pessoas acotovelavam-se nos limites dos municípios para ver a barreira de nuvens, separando um lugar do outro, como uma parede de algodão, que as assombrava. Era uma densa parede branca, espessa, impedindo a passagem de qualquer coisa, até mesmo dos sons. Quem quer que tentasse ouvir alguma voz do outro lado, o que ouvia era um grunhido estranho e surdo. Prefeito, parece que estamos encerrados numa masmorra de nuvens ácidas, densas, como um cobertor de algodão. Ninguém entra, ninguém sai daqui. Foi a informação prestada por um assustado servidor que acabara de vir de casa na estrada, e entrara na sala de reuniões. Vinha testemunhar que, nas cidades vizinhas, as pessoas se reuniam para verem uma assombração: a parede de cerração espessa, a névoa pesada, dividindo a paisagem em duas partes: uma, ensolarada e azul; a outra, branca e cinzenta e ácida
            As informações que precariamente chegavam, inclusive as opiniões de alguns oficiais da marinha que orientavam os voos da base naval vizinha à cidade, davam conta de que, na noite anterior ao nevoeiro, tinha havido um formação súbita de massa de ar quente, uma convecção, nos termos técnicos, que se chocara com outra massa de ar frio, extremamente frio, uma massa polar que, não se sabe a razão, parou exatamente sobre a região a parece que se concentrou sobre a cidade. As conclusões eram alarmantes, porque, provavelmente, já passava das 10 horas da manhã e o disco solar era do tamanho de uma moeda, brilhante, frio,  distante. Se não há sol, se não há vida, não há esperança. Sem vida, sem esperança, esta a sensação de todos, sobretudo se assim permanecesse por muitos dias. Então, a reunião prosseguia em meio ao espanto e à impotência dos mui alarmados administradores, ou gestores, como se diz hoje, já não muito mais preocupados com os dinheiros que deixariam de receber do que com o destino das pessoas, sobretudo os deles próprios. E, por caminhos tortos, esses ilustres servidores do povo viram-se obrigados a se preocupar, ainda que sobressaltados, com o ignorado povo. Com este contratempo, por exemplo, uma boa parte dos pagamentos em dinheiro que estava programada para aquela manhã teria de ser adiado, com muito tato, para não despertar suspeitas, nem alarmar mais ainda os credores e o comércio da cidade. Boa parte da contabilidade pública ficava pelo meio do caminho. Um dos mais preocupados, por exemplo, sabia dos pagamentos que deveriam ser feitos às cinco empresas fantasmas contratadas, justo naquela manhã, e que renderiam aos poucos afortunados e íntimos da administração outra modesta propina, uma pequena contribuição eleitoral, exagerada pelos invejosos, que se agregaria a outras pequenas fortunas, e de pequena em pequena, já era uma grande fortuna que os amigos dividiriam entre um uísque e outro, porque mereciam. São fatos da vida política.  Se a névoa não cedesse, os bancos não abririam às 11 horas e o negócio poderia desandar, pondo a descoberto as outras operações com o caixa dois. Como um óbvio castelo de cartas, tudo poderia ruir, principalmente se algum intrometido resolvesse fuçar, ou algum interessado resolvesse protestar por falta de pagamento. Seria a névoa motivo para descobrirem tantas fatalidades? Que maçada: um acontecimento desta natureza a infernizar os planos cuidadosamente concebidos, uma verdadeira obra de arte contábil, que levou quase dois anos para se construir. Devia ter prêmio Nobel para quem consegue estas proezas matemáticas... E então, um acidente como este, põe tudo a perder. Não, a vida não é justa; logo agora!
            Isso o prefeito podia ler, sem muito esforço, no rosto angustiado de seu secretário; sabia ler o que se passava na alma do auxiliar que ali estava para o despacho, justamente para tratar daqueles dinheiros desviados das grandes verbas recebidas no dia anterior. Mordia os lábios, esfregava a testa, por causa de uma viagem temerária no meio da névoa, que ainda não era tão densa, não pôde ele deixar de estar presente à reunião. . Já se sabe que estas operações, tão corriqueiras na vida do país, precisam ter a aparência de completa lisura, por isso mesmo Sua Excelência, o prefeito, e seu secretário escolheram cuidadosamente os experientes e silenciosos colaboradores, senhores respeitáveis, vindos da capital, com larga experiência em falcatruas, sem deixar pistas. Para não haver suspeita, freqüentavam todos a mesma igreja, ouviam os mesmos cultos e era possível até que acreditassem no mesmo Deus, mas isto ainda teria de ser verificado, se alguém se importa com este detalhe banal.
            O incidente da névoa fora um desses acidentes que poderiam revelar certas operações delicadas com o dinheiro público.
            Mas não se pode dizer mal das criaturas que hoje nos governam, afinal de contas foram eleitos por nós, lá estão em nosso nome; fizeram jus ao voto que a população lhes outorgou e não é justo que fiquemos nós, criadores de casos e personagens desprezíveis, a enlamear-lhes a reputação. Se não temos provas claras e declaradas de suas desvirtudes, como, por exemplo, uma confissão assinada e registrada em cartório, é melhor calar-se. São pessoas que sacrificam suas horas e suas vidas para nos governar. O que fazemos nós pode ser produto da inveja do sucesso deles e se suas fortunas mais do que duplicaram em tão pouco tempo, é porque Deus os ama e não tens tu, infame leitor, o direito de suspeitar-lhes a dignidade, nem tu, desditado autor, de enlamear-lhes a honra. É que esses intelectuais são mesmo uns cretinos irresponsáveis!
            Até parece que a névoa está a encobrir a inteligência de quem lê e de quem escreve.
            Para ser sincero, no fundo, nada disso importava agora. O que importava era o silêncio à volta e em torno da cidade. Mais de uma vez, no meio do temor geral, alguém se levantava, dirigia-se à imensa janela da prefeitura, que se abria para a praça, e suspirava entre resignado e preocupado. Em resumo: ninguém tinha a menor ideia do que fazer, então nada se fazia, que não fosse conjecturar sobre o destino de cada um e de todos.
            Aos poucos, todos os outros, presentes à reunião, aproximaram-se da janela e viram a procissão de corpos emergindo da cerração, quais almas macabras arrastando correntes. Iam num desfile grotesco, espalhados pelas calçadas, tropeçando no meio-fio ou simplesmente deixando-se estar, imóveis, com o rosto para cima buscando a respiração que se ia tornando penosa quando o ar custava a vir. Então, pouco a pouco, o desfile improvável de almas assombradas foi chegando próximo do prédio da prefeitura. Em breve, todos se sentaram nas escadarias do edifício e ali permaneceram, calados, enquanto esperavam, não se sabe o quê. Era como se uma voz assim ordenasse, embora nenhuma voz se escutasse.
            Foram sentando-se nas escadarias do prédio, em curioso ritual, como uma fraternidade de desesperados, porém em silêncio. Muitos rezavam, outros tantos se abraçavam com temor e entre eles estava Lívia, abraçada ao próprio corpo, buscando por entre a névoa um rosto conhecido, alguém próximo, com quem mais pudesse dividir o espanto. Lívia acabara de chegar, com três outros passantes.
            Um cão aproximou-se dela, sentiu-lhe o cheiro lá do jeito que eles têm de reconhecer um amigo ou um inimigo e esperou a mão suave de Lívia sobre sua cabeça enorme. Acolheu de olhos cerrados o agrado. Na verdade, aquele carinho e algumas palavras docemente murmuradas ao ouvido do cão, foram suficientes para selar uma amizade eterna como só lá os cães sabem celebrar, talvez porque não nos contestem, mesmo se os magoamos. Deitou-se o cão aos pés de Lívia e é como se ela soubesse que estava protegida, defendida de todo mal. Um cão branco, com algumas pintas pretas em torno do olho esquerdo, dava-lhe a feição marota de cão sem dono. Talvez por isso se chamasse  bandido, ou pirata, mas nesse momento pouco importava o nome, importava o pelo macio e o jeito amigável com que se deitou sobre os pés de Lívia, sacudindo a cauda, esperando pelo carinho inevitável de sua nova dona, cujo aroma já guardava em sua arguta memória de cão sem pátria. Lívia era para ele todos os cheiros de um único olfato que jamais se repetira nos outros bípedes que conhecera. Isto,é claro, supondo que os cães pensassem e sentissem e soubessem que eram cães e que se expressassem como gente.
            Lívia procurou por entre as enevoadas fisionomias alguém que pudesse ser o dono dele, porém não aparecia pessoa alguma. Supôs então que estivesse perdido. Com o nevoeiro e a densidade do ar, era possível que o cão já não tivesse senso de direção e seu olfato estivesse irremediavelmente comprometido e com isso perdera o rumo de casa. Esta circunstância, que lhe pareceu lógica e razoável, serviu de justificativa para mais ainda quisesse bem ao animal que tão dócil parecia, que tão semelhante destino com ela dividia, e de seus olhos úmidos surgia uma cumplicidade de afetos. Você está como eu, não é? Não sabe para onde vai nem o que fazer. Vamos ficar juntos. Isto disse Lívia e provavelmente foi também isto que ouviu o cão, pois mesmo que não ouvisse era como se tivesse ouvido, pois abanou a cauda, lá do jeito que fazem os cães quando aprovam o humano a quem querem agradar e de quem não esperam um pontapé ou coisa parecida. Para eles, afeto e cumplicidade são a mesma coisa.
            Lívia abraçou-se ao cão e resolveu chamar-lhe “Argos”, como uma homenagem ao personagem de uma história, muito antiga, que lera, de cujo autor não se queria lembrar, infelizmente, não obstante soubesse que se tratava de uma história de viagem, em meio a alguns nevoeiros, feita por um certo Odisseus ou Ulisses. Lembrava-se de que o herói não conseguia retornar aos braços de sua Penélope, cujas virtudes compensavam a desonrada Helena e seu amante, um príncipe de Tróia. Lívia sofria, com aquele impossível retorno, no nevoeiro, a repetida nostalgia narrada a longos séculos por um cego ilustre.
            Mas não tem sido ingrato o autor dessas linhas que muito admira o poeta antigo e devota-lhe toda admiração e por isso o homenageia com esta breve lembrança.
E Argos ficou sendo chamado o cão. Talvez convenha ao leitor saber que também poderia ter sido ele chamado de “Pastor”, pois será quem guiará o povo da praça pelos caminhos da revelação, lá onde se encontra a solução deste mistério gasoso, se assim se pode dizer.
            Podia também chamar-se “Constante”, mas estas razões ficam para depois, para quando se homenagear um outro lendário escriba, chamado Saramago.
            Enquanto isso não vem à baila, basta ao leitor ver desenhar-se ante seus olhos nublados o vulto de Lívia e do cão Argos levantarem-se e irem ambos na direção da praia, já seguindo o povo que, numa decisão abrupta, resolvera caminhar em demanda do infindável mar.
            A assim lá vai andando a procissão, o cão Argos à frente, adiantando-se alguns metros e parando em seguida, virando a cara, com o focinho para cima, como se buscasse o ar que não vinha facilmente e farejando pressentimentos. Ao perceber a proximidade de Lívia, continua o passo, acelerando o caminho, semelhando tranquila guarda de um paciente cuidado de amor resignado.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

11º capítulo


            11
    livia e a mãe sentaram-se juntas no sofá da sala e assim permaneceram, mãos entrelaçadas, contemplando a cerração implacável embaçando a janela em frente. Nenhuma delas pronunciou qualquer palavra . Os relógios congelados indicavam sempre a mesma hora, as televisões, os aparelhos de rádios, até os vizinhos se recolheram em prudente silêncio. Não se pode saber quanto tempo assim permaneceram, uma vez que o único relógio funcionando era o da igreja matriz, na praça; assim diziam, e mesmo que fosse possível medir o tempo, as duas mulheres permaneceriam mudas, o que não significa incomunicabilidade. Ao contrário, ambas preferiam o silêncio e com isto já se dizia o essencial. Pela janela aberta, a bruma bailava branca branca branca, ácida, densa, opaca, impedindo a passagem dos sons, de modo que o mundo parecia uma caixa de vidro onde quase todos os ruídos eram abafados. A névoa penetrava pela janela da sala, recobria os móveis, tudo em se tornando difusa silhueta por dentro da pálida cerração. A sala invadida de palidez figurava um mundo absurdamente volátil. Um pouco depois, Lívia levantou-se, cerrou a janela e voltou para o sofá, sentou-se ao lado da mãe. Subitamente, agitou-se nervosa, inquieta, pôs-se a caminhar de um lado a para o outro: Mãe, tenho de sair, tenho de chegar ao trabalho Preciso saber o que está acontecendo. Surpreendida com a decisão, a mãe alarmou-se: que o acontecido era imprevisível, que podia ser perigoso, que isto era algum castigo, que todos vamos morrer, é o fim do mundo, que o pastor já diria se ali estivesse: o apocalipse está chegando, este mundo de pecados contra a Palavra está com seus dias contados. Só vão sobreviver os nossos, os de nossa igreja, eu vi, Deus falou comigo E você, filha, nunca se importou. Agora veja com os próprios olhos. Lívia tentou ser mais paciente e gentil. A mãe não tinha o que temer se permanecesse em casa, mesmo sozinha; porém ela devia sair, tinha de ver o que estava acontecendo com as pessoas, com as ruas, com a cidade, com a vida. Não havia telefone funcionando, nem internet, então só se podia saber de alguma coisa caso fosse pessoalmente. Vou até a Praça da Matriz e na prefeitura, lá, quem sabe, encontro alguém que possa dizer o que está acontecendo .Não tenha receio, mãezinha, eu sei  me cuidar. Nada demais vai me acontecer.
            Ignorou os elevadores, com medo de que a luz faltasse no meio da descida e ela ficasse presa, sem ninguém para acudir. Desceu, portanto, pelas escadas. Fê-lo cautelosamente, pelos quatro lances da escadaria, em meio ao ruço que invadia o prédio. Havia que desbravar os lanços da escada, sem poder enxergar com nitidez os degraus, mas valia a pena. Era preciso. Então, pé ante pé, bem calculadamente, Lívia alcançou o térreo, abriu a porta de vidro e mergulhou no imenso mar de brancas nuvens, ácidas, do que uma vez fora uma rua. Com os olhos ardendo, lacrimejando e com dificuldade de respiração, Lívia teimava em caminhar às cegas, em linha reta, no sentido da Praça, caminho que ela conhecia com precisão. Mesmo assim, muito cuidadosamente, Lívia desceu a rua e mal ouvia os carros passando: um ou outro, arranhando o asfalto. Um ou outro automóvel passava por ela, faróis acessos, bem devagar, sem que se pudesse quase ouvir o ruído dos pneus. Rodavam macios e discretos, sem destino certo, como se o motorista esperasse por algum sinal ou pista por onde seguir. Era antes um ruído abafado, como se os ouvidos estivessem entupidos de cerume. Na pele, a acidez da bruma dava a sensação de que lhe estavam arrancando os pelos com o desconforto de uma pinça cega. Lívia, embora com muito medo, caminhou por um tempo longo, guiada apenas pela intuição de seus passos, indo na direção da Praça da Matriz, onde esperava obter informações sobre o que se passava na cidade naquela manhã fatídica.
            Grande era o temor, mas grande também a vontade de sobreviver, de saber dos amigos, das pessoas conhecidas e, principalmente, de Rodrigo. O caminho de Lívia reproduzia a história de nossa espécie, acostumada a buscar a vida onde só existe a probabilidade da morte, mas sempre a vida triunfando em sua imortalidade coletiva. A vida, claro, da espécie, e não a vida do indivíduo, porque essa passa como um sopro. Não obstante, ela seguia cautelosamente, solitariamente, em busca de alguma resposta que lhe pudesse devolver a tranqüilidade, resposta que supunha estar na praça, nos relatos dos amigos de infortúnio, na comunidade dos habitantes deste imenso vazio branco, a bruma ácida na manhã. Lívia tinha certeza de que, havendo uma resposta para tudo isto, ela só poderia ser encontrada no meio dos outros, com os outros.
            Temia, sobretudo, cair numa espécie de vazio, de abismo, que a cerração escondia: um buraco sem fim, um abismo interminável, uma fratura no asfalto que a conduzisse para uma queda interminável. Era uma súbita sensação de pavor, como se, depois de cada passo, uma fenda se abrisse sob seus pés e ela mergulhasse num enorme buraco sem fim. Foi então que ouviu passos que caminhavam em sua direção, finalmente não estava sozinha. Alguém caminhava em sua direção, com os mesmos passos tateantes, vacilantes. Talvez não fosse uma pessoa apenas, mas duas, ou três, que os passos se misturavam, em quase secreta sincronia. Ao ouvi-los, porém, Lívia sentiu alguma coisa próxima da euforia ou de alívio. Sim, o medo agora podia ser compartilhado, não estava perdida. Apesar da névoa e da impossibilidade de vislumbrar seus parceiros de jornada, sabia que eram pessoas como as outras, em busca de alguma explicação e de algum sentido para tudo aquilo. É esse um destino nosso, dedicarmo-nos à decifração dos mistérios do mundo e pensar que tudo se resolve na posse de umas tantas dessas verdades impronunciáveis. É este sempre o vício da vaidade humana.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

10º capítulo


10
    quando padre luis despertou do sono místico, com um tremor no corpo e na alma, sequer pressentira a presença silenciosa das fiéis beatas que, aos poucos, iam ocupando os bancos da nave central, sem coragem de se aproximarem do sacerdote, reverenciado em pleno êxtase. Entraram cerimoniosamente, pisando de leve, para não perturbar a concentração, ou deveria dizer, o profundo misticismo do padre. Miravam, com olhos de alarmante incredulidade, o rosto aceso do sacerdote, parecendo seus trajes iluminados, brilhantes, como uma transfiguração extática. Uma suposta aura flutuava sobre sua cabeça, pelo menos é o que disseram as mulheres que juraram ter visto a luz flutuante sobre a sua cabeça. Ajoelhado, com o rosto voltado para cima, para a imagem do Senhor morto na cruz, Padre Luis parecia flutuar; e as crônicas da cidade haviam de registrar que, naquele dia tão absurdo, o corpo franzino do sacerdote efetivamente flutuou por sobre o altar; todas as beatas juraram ter visto e testemunhariam a quem quer que se dispusesse a ouvi-las.
            A maioria da Assembleia era composta de mulheres, cujos maridos, namorados, irmãos, pais ou alguém impronunciável estavam na labuta ou tentando chegar a ela, ou mesmo buscando mais informações que esclarecessem o mistério da névoa. Essas mulheres, a quem pertence a tarefa de orar, surpreendidas pelo êxtase místico do celebrante, ficaram a contemplar a cena como se fora um capítulo vivo do Novo Testamento, ou do Velho, que, para essa gente, não havia diferença, tudo era a voz sagrada. Nenhuma das beatas pronunciou qualquer palavra, nem era preciso, a cena falava por si mesma e todas mantinham a respiração suspensa, o corpo em ausência como se ali não estivessem, e logo depois estivessem, como uma intermitência que, por suposto, antecede a presença de Deus. Pois já não disse um poeta que Deus é um grande intervalo? E que se não é possível vê-Lo, senão se pode pressenti-lo.
            Padre Luis levantou-se penosamente, ainda vacilante em suas pernas dormentes, e pronunciou, solene, as palavras que abriam a cerimônia, embora não parecesse ser a voz dele, que era rouca e mais que chegava a cada um como fosse dita à beira do ouvido de cada uma das mulheres: louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.E as beatas, não mais do que duas dúzias, responderam emocionadas, quase em segredo: para sempre seja louvado. De braços abertos, como estava o Senhor, no alto, às suas costas, Padre Luis não conseguia pronunciar o restante do introito, sua voz tornou-se áspera e aguda, recusava-se a articular na garganta estreita e áspera uma frase completa, embora sua memória soubesse exatamente o que deveria ser dito. Então, neste dia estranho, com a névoa mais densa ainda dentro da Igreja de modo que apenas a silhueta do celebrante podia ser efetivamente vislumbrada, as beatas viram e juram que viram o sangue escorrendo da testa do padre enquanto seus olhos choravam as mesmas lágrimas de sangue que choraram tantos homens e mulheres antes de seus holocaustos. Dos trêmulos lábios, puderam as mulheres ouvir em seus ouvidos, e apenas para seus ouvidos, as palavras do padre: cordeiro de Deus que tirais os pecados do mundo rogai por nós, pecadores
            Antes do desmaio -- um baque surdo no chão frio do altar-- sua voz esganiçada proclamou, numa língua incompreensível para aquele povo, a ladainha: Redimisti nos domine, deus veritatis ,com a espuma descendo dos lábios cerrados e as mãos crispadas como garras de  uma ave de rapina. Por não saberem bem o que dissessem, a igreja toda reverberou Amen., anunciando o temor de todos, embora um frio percorresse a espinha e ninguém soubesse exatamente onde estava o fim desta cena.
            Eis senão quando, Padre Luis flutuou, de um lado para o outro, bem no meio da nave central da igreja. O corpo ao comprido, braços abertos em cruz, rosto pendente sobre o ombro esquerdo, uma figura de El Greco deslizava em meio à névoa sem que nada ou ninguém o sustentasse. Era apenas a flutuação oca de um corpo magro, pálidas faces, boca escancarada, um homem tentando respirar, que já não estava mais submetido à gravidade, mas ao imponderável.
            As beatas ajoelharam-se e toda a Igreja esparramou-se contrita pelo chão frio e úmido. 
            Era impossível saber as horas, nem lugar, nem quando, muito menos por quê. Quando tudo isto virar palavras repetidas nas bocas de cada um, possivelmente dirão que é mentira ou alguma piedosa crendice desse povo analfabeto que vive inventando lenda para distrair o turista, mas nós sabemos que foi tudo verdade, a mais lúcida verdade naquele meio-dia de triste agonia e não incomum desespero. Os prodígios aconteciam ante os olhos de todos, sem explicação, como convém aos prodígios.
            Uma canção de imprecisos versos espalhou-se pela igreja, um canto profundo e triste que podia comover até as pedras frias que vestiam os muros do convento onde fora construída a igreja.
            Enquanto flutuava, seguindo o ritmo do cântico, o corpo magro do Padre Luis prosseguia desafiando a gravidade, anunciava o prodígio e enchia de terror aquele povo simples, crédulo, que talvez não merecesse viver um enigma tão indecifrável. Ou talvez fosse tudo parte de uma trama que nossa razão ( pobre de nós) jamais poderia compreender. Tanto melhor, porque assim pode ser contada em um romance, afinal é para isto que servem os romances, não é mesmo? Para dar sentido ao sem sentido da realidade.

sábado, 5 de maio de 2012

9 ° capítulo


9    sentado à cabeceira da vasta mesa, como convém aos poderosos, visivelmente irritado, Sua Excelência solicitou maiores informações. Coube ao secretário de Governo e responsável pela segurança, com a solenidade cautelosa que estava a exigir a situação, expor, com a brevidade possível, a situação. Em resumo, fomos tomados por umas nuvens espessas, umas nuvens brancas que ardem quando se respira dentro delas, por isso mesmo as janelas devem permanecer fechadas e o povo recolhido em suas casas. O senhor prefeito quando veio para cá deve ter visto que só se chega aqui com os faróis dos carros bem acesos e assim mesmo dirigindo com muito cuidado Apesar disto, não foi registrado nenhum incidente. Parece que o povo preferiu trancar-se em casa. O rosto de prefeito deixou transparecer impaciência; um suspiro e um discreto crispar de dedos, um leve assovio de lábios semicerrados e olhos idem foram o suficiente para o secretário acelerar o relato, com mais objetividade e brevidade para não ofender a paciência do ilustre ouvinte. Pois, como ia dizendo, senhor prefeito, não temos informes precisos. Só conseguimos saber que ninguém entra nem sai da cidade, pelo menos desde as seis e quarenta e oito que é quanto marcam os relógios de todas as casas, menos o da matriz, que esse parece não ter parado e funciona regularmente, pelo menos até agora.  O prefeito contraditou: Mas afinal, alguém pode me informar o que se passa? Que tipo de coisa aconteceu de ontem para hoje, foi como Sua Excelência reagiu ao relato, sem esperar resposta plausível.Embora se saiba que a surpresa de uma excelência deve ser sempre tomada como hipérbole ou véspera de uma inamovível irritação que pode custar a cabeça de alguém. Mas isto é sempre a mesma coisa desde que o mundo é mundo.
            As informações, no entanto, prosseguiam em cascatas de más novidades, alarmantes todas. De todos os lados, surgiam histórias semelhantes, conforme chegavam à prefeitura pela voz dos informantes: pessoas envoltas em névoa, tateando pelas ruas; os postos de saúde e os hospitais repletos de mulheres; velhos e crianças com dificuldades respiratórias; os ônibus já não circulavam, os telefones, mudos; e ninguém entrava ou saia da cidade, embora nenhuma lei impedisse a circulação. Em resumo (como apreciava Sua Excelência), nem mesmo a base militar, instalada na cidade vizinha, conseguia saber com precisão o que ocorrera. Na verdade, a única coisa que se sabia com certeza era que o fenômeno se restringia a este município, a esta cidade, nenhuma outra região se apresentava com problema semelhante, muito ao contrário: o sol brilhava e o dia era esplêndido por todo o resto do país. A situação que se apresentava era absolutamente única, incompreensível e assustadora. E nem adiantava usar máscaras de oxigênio, como alguém sugeriu, porque a acidez da névoa corroia, em poucos minutos, os tubos de borracha; e a vítima sucumbia em míseros segundos.
            A cada minuto, mesmo sem os telefones operando, as autoridades constituídas procuravam pelo menos dar a entender que tudo estava sob controle, não obstante a imprecisão das orientações. Estavam em um teatro que exigia dos atores toda seriedade para enfrentar a gravidade do momento. Era preciso evitar alguma perturbação da ordem e, para isto, as forças policiais foram convocadas, como puderam, para um plano de emergência, que se mostraria frágil, caso fosse realmente necessário, até porque não havia plano de emergência algum para uma situação como esta. Como sempre afirmou a oposição, este governo era incompetente, incapaz e corrupto, portanto um desastre, portanto muito abaixo do imenso desafio que se fazia presente. Já ninguém esperava um acontecimento deste porte, de modo que, sem uma resposta que pudesse tranqüilizar a população, o governo optou pelo silêncio; o povo, pelo boato, e a oposição, pela denegação. Pelo silêncio, para evitar qualquer declaração desastrosa e, para enfrentar a boataria, era importante difundir a idéia de que o fenômeno climático que ocorria poderia ser passageiro, fruto do descontrole climático que passaria em breve e que precisávamos de tranquilidade.. Mas o boato, com a força da imaginação e a liberdade de julgamento, sem nenhum compromisso com a ciência ou os saberes instituídos, preferiu apostar numa interferência divina, um castigo, que somente com orações poderia ser debelado, conforme sustentavam os opositores, este governo é a maldição do anticristo. A custa de breves recados transmitidos oralmente, convocou-se o povo para as orações, nos templos de todas as religiões, com o beneplácito da prefeitura que mantinha certo controle sobre alguns líderes religiosos, à custa, claro, de benefícios financeiros, sempre negados com indignação e ameaça de excomunhão ou expurgo ou interdito ou anátema a quem ousasse levantar esta leviandade, embora o conforto com que viviam os beneficiários do governo fosse evidente. Neste ponto, o poder  é sempre muito eficiente, como, aliás, acontece a toda hora no país e quiçá no mundo, que isto de política é sempre um murmurar de coisas indignas e de troca de uns tantos favores, mesmo entre religiosos contidos em sua fé, mas não tanto. É uma regra atemporal, que vale para todas as latitudes conhecidas, quiçá desconhecidas também. Isto de políticas é sempre o fel da desumanidade misturado com cinismo, e um certo talento para fazer-se um santo em busca da salvação das almas penadas. Olha que este nevoeiro está mais dentro das pessoas que fora delas!
            No entanto, a vida estava paralisada já havia mais de cinco horas, conforme mostrava o relógio da matriz, cujos ponteiros só eram visíveis para quem subia ao topo de torre e de lá pudesse tatear os ditos ponteiros, deduzindo-lhes as horas. Tarefa, aliás, que coube ao Manuelzinho, menino de prováveis quatorze anos inexatos, franzino e ágil, que subiu até o topo da matriz, na torre do relógio, e de lá de cima berrava as horas para quem, no meio do nevoeiro, pudesse e quisesse ouvir e com isso ganhou destaque nas histórias que se contarão depois. Desse modo, tornou-se personagem importante no enredo deste dia, que seria contado pelos anos vindouros, até quando fosse ele um velho matreiro, sentado na praça, ganhando uns trocados dos turistas que apreciavam ouvir estas lendas, com toda certeza inventadas por um velho doido, mas simpático. E que cidade não tem seus velhos loucos e patuscos? Ora, quem acreditaria numa cidade afogada por um nevoeiro? Só por invenções da loucura. Só não sabiam eles que a loucura é apenas outra maneira de ter razão, ou de se antecipar à própria razão. Mas sabemos nós que os loucos e somente os loucos dizem a verdade.
            Isso antes de os relógios pararem definitivamente, mesmo o relógio da torre que, às dez horas e vinte e três minutos, cessou de girar, situação que o povo imediatamente considerou mais uma prova  da maldição que caíra sobre o município.
            Terminada a reunião, reuniram-se os senhores secretários com o prefeito, em seu gabinete, para, secretamente, considerarem a situação “periclitante”, conforme mencionou Sua Excelência, já com certo fastio, porém alguma inquietação, sabedor que era da responsabilidade dele solucionar o problema provavelmente insolúvel.
            Da janela do gabinete, podia-se ver a massa da branca nuvem envolvendo toda a praça. Já não se podia enxergar o topo das árvores, porém os milhares de vultos humanos, deslizando no meio da névoa, iam ocupando os arredores do prédio e, como se obedecessem a um comando invisível, acercavam-se uns dos outros em surdas conversações na tentativa de compreender o incompreensível. Alguns rezavam, ajoelhados, nos degraus da Matriz, outros se abraçavam comovidamente; poder-se-ia dizer, se fosse o caso, que se tratava de uma cena de cinema antigo e romântico, tal o afeto com que se encerravam uns nos braços dos outros. Alguns ainda, impacientes, andavam de um lado para o outro, tensos, anunciando algum desastre inevitável ou terrível desgraça. Nem a pequena auréola solar que se esforçava por trazer um pouco de luminosidade pálida e branca fora capaz de infundir naquelas pessoas alguma esperança.
            Visto assim, de longe, aqueles vultos humanos, de mãos dadas, corpo com corpo, abraçados e protegidos pelo peso de seus corpos, pareciam traduzir o amor fraterno como um sentimento que nos é capaz de unir e tornar suportável o sofrimento, por mais incompreensível. A ironia permite dizer que poderiam ser, afinal, felizes por se amarem tanto, não fosse isto o resultado de um temor devastador. Afinal, é do medo e do terror que aprendemos a vida. Aquele povo tinha de viver com sua própria vontade e, se possível, com sua perdida alegria.
            Não se ouvia tanto falar em fim do mundo? Não eram pregações dos pastores, também do padre Luis, cujas vozes erguiam-se corajosas, avisando os fiéis da iminência do apocalipse, da destruição da cidade, como acontecera a tantas outras, dito no Velho Testamento? Não eram as escatologias coisas desse mundo? O nevoeiro estranho e silencioso bem poderia ser o começo da profecia que enchia de terror os sonhos daqueles sofridos moradores.
            O povo nas ruas, nas praças, nas avenidas ainda não era tão numeroso, porém era suficiente para demonstrar a inquietação de suas almas. Quantas coisas ficariam pelo caminho se estivesse o mundo por se acabar? Quantas histórias interrompidas, amores não declarados, mentiras por esclarecer, verdades por dizer, filhos sem futuro, destinos brutalmente negados não em fogo ou em água, como já acontecera, mas numa prosaica, estúpida névoa branca que não deixava respirar direito, a arder nos olhos. Nem sequer podia-se ter o consolo da uma explicação racional. Ah, sim, a vida é sempre fantástica quando se tem de enfrentar o improvável.
            Ai que aquilo que somos (e somos o que não somos, e o que nos é negado), está sempre adiante de nós mesmos, sempre nos esperando para ser. E agora já não poderemos mais ser, porque este lugar, onde está quem somos, não mais existirá, e não se pode ser algo sem um lugar. Pode-se chamar a isto de vida? Ou de morte?
            A que estranhos mistérios pode conduzir um simples nevoeiro numa cidade qualquer! Quantos desafios a enfrentar para se saber o que é, justamente partindo da escuridão de uma névoa.
            Os dias deverão se arrastar lentamente, na fluidez da bruma. Nada parecia indicar o fim do nevoeiro, se seria naquela noite ( quando chegasse) ou talvez no fim da tarde. Seria, de todo modo, aterrador viver na escuridão da noite cercado pela névoa, com medo, com fome, sem poder vislumbrar as ruas e as esquinas. Havia de ser horrível perder-se no mundo abafado, escuro, sem poder ouvir uma notícia, uma nota, um alento, só o mar, desfolhando-se em ondas, na praia.
            Mas havia de ter uma razão, um lugar de onde tudo isto vinha, um lugar talvez não tão longe daqui. Talvez tão próximo que sequer podíamos ver.