“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

segunda-feira, 30 de abril de 2012

8º capítulo


8
            quando percebeu algum movimento dentro do quiosque de seu Antonio, confirmado pelas luzes que se acenderam, José Inácio levantou-se do banco e bateu, levemente, no balcão que servia também de porta. Fê-lo discretamente, porque seu Antonio, lá do jeito dele, não gostava de que o acordassem para abrir o bar. Pelo que se lembrava, nunca havia sucedido de ir à pesca e a birosca estar fechada. Porém naquele dia, ou ainda súbita noite, fechada estava. Bateu um pouco mais forte, porque ninguém atendera ao primeiro chamado. Com a insistência das batidas, seu Antonio ruminou alguns impropérios impublicáveis, com o insistente sotaque lusitano, sublinhado pelo aviso e a secura de sua língua ríspida : Já estou, já estou lá. .Não podes esperar? . Foi justo o tempo de a porta-balcão abrir-se verticalmente e uma luz pálida dançar no meio da névoa. De dentro dela, quase invisível, foi surgindo o rosto enfezado e mal desperto de seu Antonio. José Inácio, em princípio, não sabia dizer se era um rosto zangado ou apenas aborrecido, talvez fosse ambos. O rude proprietário, contrariado, vociferou: Mas que é isto? De onde vem esta neblina toda? Quase perdi a hora.. José Inácio disse-lhe que não sabia, mas que era tudo muito esquisito e que ele precisa tomar café para pegar o barco. Mas que barco? Estás louco? Não percebes que estará tudo ao alvoroço? Estamos com estas neblinas e não se sabe o que fazer. Tens de esperar”. José Inácio logo percebeu que nenhum pescador iria se aventurar mar a dentro com aquele clima. Indagou do velho Antonio se ele sabia de mais alguma coisa, além do que se podia ver; se as rádios anunciaram alguma novidade. Foi informado, enfim, que nada se comunicava, nem as rádios, nem os telefones, e que ele de nada sabia, porém muito temia, que estas coisas misteriosas tinham partes com o diabo, onde já se viu uma coisa dessas?
            Ficaram os dois conjeturando entre temores, de voz baixa para não serem ouvidos não se sabe por quem, quando receberam de dona Olívia, a mulher de seu Antonio, a notícia de que estava a cidade completamente isolada do resto do mundo, que ninguém entrava e nem saía, nem mesmo os ônibus.Uma vizinha tinha-lhe contado como o filho dela tentara ir para o trabalho e não fora possível, devido à neblina. Havia uma grossa camada de nuvens de modo que tudo estava a cegar os olhos. Se for possível, mais tarde, se a neblina recolhesse um pouco,  disse ela que ia rezar na igreja, com as outras mulheres, a ver se Padre Luis sabia de alguma coisa. Seu Antonio procurava, no rádio, informar-se de alguma novidade, porém, de nada adiantava porque o que se ouviam eram os ruídos estridentes do alto-falante, chiando como ovos estrelados, ou gotas de chuva no chão. José Inácio entendeu que esta situação estava indo muito mal e que o mundo poderia estar mesmo se acabando, conforme diziam os crentes, leitores da bíblia, principalmente na parte do Apocalipse, como se lembrava sua memória de menino inquieto a fazer o catecismo na distante vida de criança. Sentiu algo como uma espécie de medo sem se importar com o fato de que era marmanjo tarimbado nas armadilhas do clima, que todo pescador tem de saber lidar com o tempo e os nevoeiros, já os enfrentara tantas vezes.Eram como as sereias, é preciso  não lhes ouvir as cantigas que passam logo, como todo cais que é uma saudade de pedra, afinal, tudo o que vem do mar passa depressa. Mas, neste caso, José Inácio temia não saber de onde vinha tamanha esquisitice. Tomou, então, a iniciativa de sugerir que fossem, seu Antonio e ele, até o centro da cidade, à praça da Igreja, caminhando, isto é, tateando por entre a névoa espessa. Vamos para a praça, quem sabe lá nos dizem o que está a acontecer? Seu Antonio, com alguma vacilação, concordou, não sem antes sugerir que fossem com muito cuidado, era como andar no escuro, sem se enxergar sequer um dedo antes dos narizes. Porém, seu Antonio cerrou as portas de seu quiosque e, cautelosos, partiram ambos para uma caminhada sem preciso rumo e de curto horizonte, conforme supunham eles, por entre a névoa branca.
            E quem pudesse vê-los certamente os imaginaria parvos: como dois cegos (quando um cego ajuda o outro, vão ambos cair no abismo, assim disse o Senhor), de braços dados, cada qual com sua vara de bambu, à guisa de bengalas, iam passoslentamente, medindo o chão para não tropeçarem. E lá se foram ambos em busca da decifração deste enigma em que a cidade fora tomada, pelo denso nevoeiro, e se fechou em si mesma, sem contato com o mundo exterior.
            Não cabe agora, desavisado leitor, argumentar que estes dois homens ingênuos tivessem condições de decifrar tamanho mistério, reservado apenas à ciência dos iniciados, portanto, a vontade que lhes movia não era a de conhecer o nevoeiro, mas de saber de onde vinha. Também no fundo da memória do enfezado Antonio soprava uma longínqua ideia de que o sal do mar imenso, a banhar a cidade, de lágrimas fosse, mas não as de Portugal e sim as dessa cidade tomada por tão grande mistério e que também de lágrimas fossem as nívias névoas que embaçavam a visão. Ou mesmo que esta decisão fosse parte de uma vontade cega que a gente não tem a menor ideia de onde vem.
            O temor que sentiam não foi capaz de detê-los, muito menos a prudência; esta mandava que ficassem no mesmo lugar, aguardando os acontecimentos, as notícias, mas a curiosidade humana é sempre mais eloqüente do que qualquer prudência, ainda mais no velho português, pois se de prudências e cautelas fosse seu povo feito, não teriam recortado o mundo à imagem e semelhança de sua ilustre Pátria Lusitana, nem teriam eles conquistado tão longínquas terras à roda do mundo.. A vastidão do império dilatado, da fé e da conquista, não fora, com certeza, obra de prudência mas de destemor, de ousadia, ou desta coisa também cega que é a vontade de poder de todo um povo, numa façanha que jamais se repetiria.. Então, partiu com José Inácio, tateando através da cerração que mal os deixava respirar. No entanto, caminhar era preciso, viver, nem tanto, ou talvez. Por isso, seguiram os dois o caminho em frente.
            Quem os visse, destemidos embora cuidadosos, não traduziria esta mera aventura numa metáfora de uma conquista ou de um povo heroico, mas a simples e banal vontade de saber o que se passava com a cidade recoberta pelo ruço e pelo assombro. Afinal, todas essas grandezas aqui relembradas não passam de apêndices de um possível romance.
Pois é assim mesmo que se dão as coisas: muitas vezes, o que é simples curiosidade ou rotineira virtude de inquietar-se, resulta em profundos mistérios da alma humana. Que estranho que é esse bicho-homem.

sábado, 21 de abril de 2012

7º capítulo


7  
    o velho jornalista, de fatigadas jornadas, decidira morar na cidade, à beira-mar, fazia pouco tempo. Esperava ali terminar seus dias, e, para desenfastiar-se, escrevia suas matérias sem grandes cuidados, nem brilho, vendendo-as a algum jornal da capital, mais por hábito do que por ofício propriamente dito. Escrevia lentamente, com a cara enfiada no papel, esforçando-se por enxergar as palavras em meio à névoa e a cegueira que lhe mortificava, agora agravada pelo nevoeiro em torno de si e não apenas o dos olhos cansados. Já não fazia uso da velha máquina de escrever, antes preferia o lápis, melhor dizendo, vários lápis com que rabiscava, freneticamente, as frases e compunha o texto. Gostava de imaginar-se Fernando Pessoa, com seus muitos cadernos, mas não possuía baú, que isto era para os grandes e ele era apenas um velho jornalista esperando o tempo se cumprir e ele emigrar para a terra ignota.
            Ao despertar, naquela manhã enevoada e fatídica, Borges, (veja só, era esse seu nome!) pressentiu (vícios da profissão) que ali estava uma ótima matéria para uma reportagem, imaginando o que mais tarde confirmou-se: só acontecia em nossa cidade. Nem foi preciso coletar detalhes, bastava-lhe a expressão alarmada dos vizinhos, entreouvidos no apartamento em frente, para que adivinhasse a importância dos acontecimentos. Podia vislumbrar as sombras na paisagem e os rostos tensos, nas janelas. Por isso, imediatamente, sentou-se e começou a escrever uma estória, ou uma história, dependendo de onde as circunstâncias conduzissem e os fatos vigessem. Escrevia por hábito para não perder contato com seu passado profissional. Ou escrevia pelo estilo, que é onde estas coisas se decidem. Afinal podia ser uma história/estória que teria como fundo o nevoeiro exclusivo, a bruma na paisagem, como nos seus olhos sem luz, uma cegueira ecumênica, por todos partilhada, nem por isso menos bizarra.
            Sem hesitação, escreveu a página de abertura, começando pelo método. Para isto, anotou cuidadosamente, no início de seu relato, as condições necessárias para que se tomasse nota do “verídico relato dos acontecimentos extraordinários”, conforme reza a boa técnica jornalística. Acompanhe, leitor, as palavras iniciais do autor, cujo texto foi enviado a uma editora, mas isso só depois de transposto para as facilidades da internet, não por ele, mas por uma secretária contratada que o visitava três dias por semana, trazendo um notebook onde digitava os garranchos do cego.


            Há de contar o autor uma só história, há de defini-la para a tranqüilidade do leitor e do editor, para que se distinga o falso do verdadeiro, o verdadeiro do verossímil; há de construí-la pela razão e confirmá-la com os exemplos; há de sustentá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias que se hão de seguir; com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às incredulidades do leitor que se devem também evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer a curiosidade insaciável de quem quer saber da vida alheia, mas há de se impugnar e refutar, com toda força, as imagens gratuitas, o lugar comum. Há de satisfazer às dificuldades, impugnar e refutar com toda força os argumentos dos descrentes e depois disso, há de colher, há de concluir, de convencer, há de acabar. Isto é a reportagem, isto é escrever um relato e o que não é isto, é ruído ou excessivo uso da fala. A história pode ter muita variedade de conflitos, mas há de nascer da mesma situação, continuar e acabar com ela.

            Está o leitor confuso? Ora veja: um nevoeiro tem razões, tem causas, tem forma, tem conseqüências, mas não sabemos. Assim há de ser a matéria desta narrativa. Há de ter razões fortes e sólidas, porque há de ser fundada no castigo; há de ter causas enraizadas na culpa. Desta culpa, hão de nascer diversos sofrimentos, não importa quem seja o sofrente, posto que o culpado é sempre ele mesmo, e é preciso haver redenção e premiações ao final, para que o leitor se sinta recompensado do tempo perdido e ele, Borges, tenha cumprido seu destino. Assim foram escritas todas as histórias do mundo, além de inesgotáveis enredos, pelos sublimes cegos: Milton, Homero e ele, Borges, o mais de todos modesto. Valia, no entanto, escrever, sempre, que é como respirar; escrever mesmo para que ninguém lesse. Só este imenso prazer de perceber as palavras engatadas umas nas outras, com suas sonoridades, com seus sentidos entortados e, algumas vezes, combinadas de um modo tal que não parecia sair de uma cabeça fatigada. Era como se existissem por si mesmas, com vida própria, além do bem e do mal..

            E assim, escreveu o furtivo narrador os fatos que o leitor lerá, como se eles devessem ter alguma explicação. O que ele não sabia é que, no mesmo instante, quase todos os relógios pararam na mesma hora, enquanto a cidade inquieta surpreendia o sol  a bruxulear como uma auréola pálida em meio à cerração. Também é bom que se esclareça: as razões da neblina que, por enquanto, estavam fora do alcance individual dos habitantes, restavam em algum fenômeno natural que nos ocorre, independentemente de sermos nós bons ou maus sujeitos ou que tenhamos ou não temor de Deus. Porque, numa situação como essa, nem o Padre Vieira, que com certeza parece emprestar seu estilo ao pobre jornalista, pode alguma coisa declarar. Isto posto, a cidade se esforçava em prosseguir com sua rotina, pois não é este animal humano fruto da queda e da desobediência, ou vice-versa, que não sabe conformar-se com os limites que se lhe impõem Deus e a Natureza, nisto consistindo sua rebeldia, no que muito se parece com Lúcifer, o anjo desobediente? Com quem afinal aprendeu o homem a não contentar-se com o que lhe é dado e romper as constrições da natureza, como aquele semideus cujo fígado repetia-se infinitamente, para satisfazer a teimosia  e o apetite dos abutres?
            O faro apurado de cego não perdeu a trilha por onde iria esta história, uma história que confinava, em um espaço restrito, alguns homens e mulheres, vivendo os extremos de uma fantástica situação, medindo-se até o ponto de poder esticar a tênue corda da incredulidade. O que se pôde descrever das brumas em um Castelo na Dinamarca, com as desventuras de um jovem príncipe chamado Hamlet; aqui se poderá também repetir. Talvez aqui, como lá, exista alguma coisa podre, embora aqui não seja um reino; na verdade, talvez aqui, como lá, devêssemos escrever que o resto é literatura, ou silêncio, no que dá no mesmo. Pois o véu que recobre os nossos olhos não permite que se veja o fundo das coisas, tal como deviam ser. Aliás, esta bruma que agora recobre a cidade também existe, de uma outra maneira, no resto do mundo, na medida em que oculta aos olhos o que pode ser chamado de realidade, ou verdade, ou simplesmente as coisas postas a nosso olhar, ainda que, ironicamente, aqui se trate de um cego.
            Enfim, não se pode saber ao certo o que está havendo neste lugar, mas havia suspeita de alguns deslizes. Como um dia alguém escreveu que por toda parte, nesta cidade, há corrupção; desgraçadamente, nesta terra coberta de nuvens, vai se fazendo da corrupção uma indústria. Mas que importa isto neste momento? O que pretende este ocasional narrador/repórter ou repórter/narrador, Borges, é contar uma história em que um nevoeiro inexplicável invade a vida das pessoas, mexe com suas rotinas, altera pequenos projetos de vida e ninguém sabe por que acontece, de onde vem, para onde vai, nem se é castigo divino ou obra inconclusa de alguns homens.
            Já há suficiente mistério e fantasia entre o céu e a terra. Estes fatos quase valem por si mesmos, principalmente se não se repetiam em outros lugares. No momento, com a luminária ligada e algumas centenas de linhas desenhadas na folha iluminada, o jornalista espera, como se em tocaia estivesse, pelo próximo passo a ser dado. Com o lápis suspenso, espera a frase que vem.
            Não obstante, nem um pouco de céu se pode ver por entre o espesso ruço, nem era vã a filosofia com que se tratam os Mistérios. Borges mergulhava na dupla cegueira, a sua paisagem para dentro e a paisagem em névoa, para fora.
            Enfim, conheceu o que não conheceram os gregos: a incerteza e isto era doloroso, mesmo para um cego que nela vivia desde que a noite em seus olhos pousou, há pouco tempo, talvez contado em meses.
            Um velho debruçado sobre uma folha de papel, a manhã enevoada, um silêncio côncavo, o verde opaco do mar, o dia que começava...tudo isso parece uma pintura medieval na qual se retrata o exercício da memória e da literatura.

sábado, 14 de abril de 2012

6º capítulo


            6
    já é tempo de dizer que também na cidade os muitos relógios pararam. Marcavam todos, por todos os lugares, seis horas e quarenta e oito minutos, ou seis horas e dez minutos, ou cinco horas e minutos, ou outra hora qualquer, não se podia ter certeza. As emissoras de rádio estavam fora do ar, os canais de televisão emitiam manchas cinzentas e chiavam como farelos numa folha de zinco arrastada no asfalto. Por estranho, ou muito estranho, é que não faltava energia elétrica, porém os telefones não funcionavam, como já aqui foi dito, muito menos os celulares, cujas sutilezas tecnológicas não parecem ter resistido a um simples nevoeiro. Em resumo, para ser bem preciso e direto, o tanto que se pode ser quando se conta uma situação como essa, é que a cidade enevoada por espessa camada de lívida cerração não mais fazia parte do mundo familiar, talvez fizesse de algum outro, se é possível supor existirem outros para tais circunstâncias. Por isso, estavam perdidos os habitantes, sem saber do que se tratava nem de quem socorrer-se, ou a quem pedir ajuda.
            Naturalmente (um advérbio um tanto alarmante dadas as circunstâncias) deviam cuidar do estado de coisas as chamadas “autoridades constituídas”. Aos poucos, foram elas percebendo a gravidade da situação, foram-no muito lentamente, porque assim funciona qualquer governo quando enfrenta grave situação: ficam à espera de alguma ordem ou mando e, como não se pode atropelar a cadeia de comandos, é preciso seguir rigorosamente os trâmites para não impedir o bom funcionamento das ações e não atropelar a incomparável razão de Estado, mesmo que neste caso não haja razão e muito menos Estado, pois se trata de uma pequena cidade à beira-mar como já aqui foi dito e redito. Seu povo não dispõe da malícia das cidades maiores; não obstante, tanto faz uma cidade ou um Estado quando se lhe sucede alguma desgraça, porque o espanto é o mesmo, as preces iguais, as explicações repetidas e os temores, idênticos. O espanto tem a rara qualidade de ser universal.
            Sua excelência, o senhor prefeito, só tomara ciência dos acontecimentos por volta das dez horas, horário indicado pelo único relógio ainda em funcionamento, na torre da Igreja Matriz, já que todos os outros assinalavam precisamente seis horas e quarenta e oito minutos, ou seis horas e vinte, ou quatro e dez, não importa. Fiquemos, porém com as seis horas e quarenta e oito minutos. É bom assinalar que não era muito atirado ao trabalho o ilustre prefeito, eleito pela segunda vez, após campanha milionária, carregada de corrupção e crimes eleitorais cujas conseqüências ia respondendo às custas dos dinheiros generosos, disponíveis por não menos generosas transferências orçamentárias, legais ou ilegais, obtendo com elas a jurisprudência necessária, conforme o preço pago, não constituindo essas práticas exceção alguma, ao contrário, eram apenas resultado do franco exercício de nossos costumes jurídicos e políticos, de pleno acordo com as infinitas leituras possíveis para um mesmo crime, a que se não há de censurar sem parecer estúpido ou idiota, ou ridículo, pois é esta uma herança do Império Romano e seu modo de ordenar os direitos, em empoeirados códices que hermeneutas emplumados vivem interpretando, conforme para isso recebem gordas propinas. Pois foi Sua Excelência despertado, com cerimoniosa cautela, porque costumava indispor-se com quem ousasse despertá-lo antes do meio-dia, atletico que era e sempre disposto a uma noitada alegre, justificada, sempre, pela necessidade de dar ao corpo o devido prazer, pois a vida é dura.  Aos poucos, desperto do sono, foi posto a par da situação e quando pôde afinal dar conta de si, estava já de pé, convocando, com alguma contrariedade, reuniões tão urgentes quanto inúteis, como é costume nessas ocasiões, sem esquecer o tom peremptório e severo da voz de comando, pois quem manda, grita, mesmo que não se saiba o tamanho da ordem a ser dada nem o tamanho do berro, muito menos as dimensões do desafio que, neste caso, eram imensas, quase sobrehumanas.
            O secretariado, reunido no Gabinete da Prefeitura, esperava ansioso por Sua Excelência. Mais ainda alarmou se o senhor prefeito quando recebeu a informação de que não se podia sair dos limites do município, visto que a bruma não o permitia. O fenômeno era um tanto impreciso, em face dos relatos aparvalhados que chegavam a todo instante e de todos os lugares, mas era aterrador. Quem pretendesse sair da cidade, ao chegar próximo de seus limites, via-se imediatamente engolfado pela densidade da névoa de modo que os motores dos automóveis, por exemplo, estancavam sem motivo aparente. Se de bicicleta, cegava-se o condutor; se a pé, desencontrava-se o pedestre em meio à névoa ainda mais ácida de modo que se lhe interrompia o fluxo de ar, ficando a vítima literalmente afogada e, portanto, explodir-se-iam os pulmões; melhor sempre não arriscar, por isso ninguém arriscava. As informações eram incompreensíveis, porém os fatos anunciavam singelamente que a cidade estava inexplicavelmente isolada do restante do mundo. Estavam os moradores e eventuais passantes, ou os visitantes habituais de fim de semana, entregues a si mesmos, tomados pela desolada névoa branca e seca, parecendo repetir-se, com as necessárias variações, a história do solitário náufrago Robinson Crusoe em sua ilha. Toda a cidade navegava numa bruma leitosa e inexplicável, como se tivesse tornado um modelo de comunidade excluída ao mundo, do planeta, e deixada irremediavelmente só, entregue a si mesma e à sua perplexidade. Fato este de grande conveniência quando se quer produzir uma literatura fantástica na qual os leitores se sintam em duvidosa hesitação entre o que é possível e o que não é, entre o real e o imaginário, cujas fronteiras, porosas, ainda mais instigam e provocam os curiosos. Assim se desenovelava uma história de mistérios ou um capítulo da literatura fantástica, restando sempre dúvida do que é vivido como coisa de se pegar, ou pura invencionice de pessoas que não têm mais nada a fazer e ficam inventando estória como essa, sem pé nem cabeça..
            O dilema foi aos poucos se tornando mais e mais enovelado quando nenhum dos convocados à reunião com o prefeito tinha a menor ideia das causas do fenômeno.
            Desamparo, esta a palavra que melhor descreveu aqueles momentos. Não se pôde, naquela hora, perceber algum desespero, porque o dia mal começara e não se sabia se a coisa iria cessar, do mesmo jeito que começara, isto é: sem anúncio, sem explicações. Talvez sim, talvez não, mas, por via das dúvidas, era preciso alguma explicação.
            Reunidos, portanto, no gabinete, puseram-se os membros do governo a buscar soluções para o caos. Sim, era caos o nome que se dava agora. As ruas desertas, as escolas fechadas, o comércio cerrando as portas, as pessoas refugiadas em suas casas, sem condução, a cidade parada, aterrada, imobilizada pela neblina. Temia-se, e sempre isto acontece, sobretudo quando há muitos pobres, um tumulto, com invasões e saques, nas lojas e nas casas, mas, felizmente, não havia relatos de maiores incidentes, pelo menos até aquele momento.
            À medida que falavam, Sua Excelência assobiava baixinho, expressando seu tédio com tudo aquilo. Por que não lhe deixavam em paz? Tinha de ser logo comigo? Assobiava e rabiscava numa folha de papel alguns garranchos indecifráveis. Era o sinal de que a reunião seria brevíssima e, naturalmente, inconclusiva.
            Não se disse ainda que a Prefeitura erguia-se na Praça da Matriz, onde havia um relógio na torre da Matriz, a marcar o horário regularmente. Não se sabia o motivo, mas era o único relógio funcionando. Evidentemente, a névoa foi o nexo causal encontrado para explicar por que o tempo não era devidamente registrado na cidade, exceto no relógio da igreja. As especulações não se ativeram à pura e simples coincidência, mas a algum fato misterioso e incomum, fato inevitável uma vez que o povo nada entende de ciências da natureza, mas conhece muito de orações e apelos a Deus, faculdade própria de povo miserável, porque é ele quem sabe onde lhe apertam os calos. Acreditava-se que a prefeitura é que deveria responder às dúvidas e angústias da população. O problema é que, naquele momento, todos sentiam a mesma coisa e ninguém tinha resposta para nada, muito menos as autoridades constituídas, porque não foram constituídas para decifrar enigmas de tal feitio, mas para resolver pequenas coisas sem importância e não uma cidade aprisionada pela neblina e com o tempo esquartejado por tantos quantos relógios existissem, num enigma complexo, impossível de resolver. Por que estas coisas não acontecem nas cidades grandes?
            Corriam os minutos, mesmo sem a medida deles, enquanto a névoa se mostrava de modo irregular, pois, em alguns pontos era fluida e leve, quase transparente; já em outros lugares, tornava-se densa e pegajosa. Esta irregularidade trazia mais desespero do que esperança, porque nos pontos em que era densa, a respiração fazia-se impossível. Eis um dos muitos enigmas do dia: nunca se ouvira falar em névoa irregular, com diferentes densidades, sem que ninguém fosse capaz de oferecer uma explicação plausível para tal mistério. Sorte de quem vivesse ou estivesse no meio da neblina leve, podendo ver a morna sombra do disco solar, redondo como uma moeda, brilhando no céu. Azar de quem vivesse no lado denso do ruço, pois nem respirar direito era possível, muito menos vislumbrar a luz do dia, mesmo não sendo noite. Sentia também a pele ardendo porque a bruma era ácida.
            Este estranho mundo de branca opacidade envolvia a todos, ameaçava a vida, desesperava os administradores da cidade que precisavam dar algum tipo de explicação, para uma situação implausível. Sem meios de comunicação funcionando, todos os rostos expressavam medo, incerteza, ou mesmo pavor. Aumentava o número de templos abertos com o povo pedindo a Deus a urgentíssima misericórdia.
            No gabinete, o clima era de impotência e quase desespero. Ninguém sabia a quem consultar, pois as comunicações estavam interrompidas com o mundo externo. Na cidade não era possível encontrar algum especialista ou estudioso que desse uma clara explicação para o fenômeno.
            Enquanto isso, as pessoas iam se achegando, em pequenos grupos, resignadamente. Pareciam autômatos, sem vontade própria, com os rostos ocultos pela névoa, com a voz sussurrante, como se falar fosse uma inconveniência. E murmuravam explicações, contavam-se pequenos incidentes, trocavam-se temores e, em alguns poucos casos, umas tantas juras de amor eram ditas. Talvez, nesse momento, confessar um amor representasse uma forma de elogio à vida, pois, embora ninguém tivesse morrido ate o momento, alguma coisa horrível poderia acontecer.
            O silêncio e o medo habitavam junto ao povo que, em estranha associação, ainda contava com a esperança de tudo terminar bem e o pesadelo acabar. Inimaginável é mesmo esse povo que sempre está a nos surpreender com suas lições de otimismo e de esperança.

sábado, 7 de abril de 2012

5º capítulo


            5
    naquela manhã nevoenta não houve a missa das sete horas. Padre Luís agitou o corpo franzino e  nervoso, ainda moço. Abriu a porta da sacristia e espantou-se com a densa bruma que quase o impedia de respirar, mesmo dentro da igreja. Não encontrou as beatas que preparavam o ambiente para a celebração matinal. A nave estava vazia; ouvia-se ao longe o eco de vozes aflitas, percebiam-se ansiosos olhares de quem se encontrou com o inesperado, seus próprios passos agitados ecoando no silêncio do imenso salão. Não eram os refletidos gestos de quem entregou o corpo e a alma (mais a alma do que o corpo, se é que, afinal, se separam ambos) à devoção da Madre Igreja Católica Apostólica Romana. Padre Luís imaginava surpreendentes rituais como quem se encontra sem saber o que fazer ante a névoa densa no ambiente. A explicação é que talvez tivesse chegado a hora do encontro tão obstinadamente aguardado, o momento em que Deus-Pai havia de prová-lo além do que humano lhe fora possível ver, ou sentir, ou tocar, e ele viveria o mistério da fé com toda força da verdade vivida. Somente a derrocada do cotidiano e da lógica do que é o comum viver poderia ser a porta de entrada para o Mistério. Os sonhos sonhados foram os de sempre na noite anterior, a mesma incerteza dura, as ambigüidades da humana existência, os latejantes apelos da carne que tantas vezes atormentara Santo Agostinho, e que ele negara, e tantas vezes o houvera enganado e ainda aí estão a provar um pobre iniciado. O nevoeiro arrancara-o da possibilidade ingênua, da beatitude inocente de presbítero, para declarar-se fenômeno inexplicável mistério insondável, porta aberta para a passagem estreita que leva ao outro lado.
            Não fora ele agraciado com a fé rude dos profetas e antepassados habitantes do deserto, nem com a fé rudimentar e absoluta que tiveram os santos medievais; a sua fé sempre fora carregada de dúvidas e de vazios sobre um mundo que se vem esfacelando, com os homens destruindo tudo o que já uma vez tivesse sido rocha, ou pedra ou simples flores aquáticas representando alguma certeza segura. Compreendia que deste mundo só sabia o que podem ver os olhos, porque o sumo, o centro, o quê das coisas, isto não lhe fora concedido saber, tanto quanto o comum dos mortais. Cabia-lhe o sentimento do fim e só podia contar com sua própria ignorância, carregada de boa-fé, para compreender a névoa estranha, mas isto era mais fácil pensar do que fazer. Sua condição de padre apenas o consolava do imenso isolamento em que vivia. Justificar-se pela fé: uma tarefa quase impossível, mas necessária, conforme ensinava o Evangelho de Paulo, também urgente e incompreensível. No entanto, não queria a fé mutilada pela cegueira da ignorância, queria a fé e a lucidez, queria uma grande festa da razão cujo prêmio fosse a definitiva compreensão da existência de Deus e de seus mistérios.A fé que o ajudaria a suportar o humano sofrimento mas com a luminosa esfera solar da manhã verdadeira, o sumo da verdade, o limite afinal atingido.
            Quanta vez pensara na loucura da fé, que resistia a toda prova, para acalentar nele o sonho da Salvação? Quanta vez pedira uma prova de sua fé, um ato qualquer, para além da humana compreensão e que tivesse o condão de anular a avassaladora força da dúvida e da razão.
            Os fiéis eram gente simples, miseráveis famílias de pescadores de mãos calejadas, suas mulheres arrastando a escandalosa prole, todos tostados de sol Amavam, com a mais acanhada ternura, um Jesus como eles, sem metafísica, sem teologia, um Jesus de pés gretados e de mãos espessas, um Jesus, simplesmente, que era como um retrato na parede: um jovem de olhos azuis, cabelos claros, descendo sobre os ombros, a pele branca, o rosto pacificado pela arte da pintura, em perene beatitude ainda que, a seus pés, morresse uma criança com fome e patinasse na lama da miséria um mestiço americano. Um Jesus em que não se espelhavam, mas que se pretendiam mirar, por mais diferente que fossem seus rostos. Na periferia da cidade, esses homens e mulheres descomplicavam a fé e a vida; não lhes toldava a meia-luz dos juízos escolásticos que Padre Luis aprendera no seminário em meio a infindáveis torneios de lógica escolástica, de retórica e argumentação. Essas pessoas simples amavam a um Jesus quase tão humano quanto eles mesmos, por isso entendiam a mensagem de um modo direto, ingênuo, às vezes precário, porém sempre espantosamente sincero.sabe era só isso mesmo? E Padre Luis os invejava e, no entanto, era um espelho em que os pobres se miravam, um espelho que ele supunha embaçado, irremediavelmente indigno de ser mirado. Mal sabiam eles que eram mais versados em teologia do que supunha toda a vã metafísica em que fora padre Luis educado no seminário. Tanta filosofia para tão rala fé!.
            Ali, parado, nos degraus do altar, contemplou a Igreja envolta por uma bruma seca, uma névoa leitosa e espessa que se imiscuía pelas frechas das portas, pelas janelas, até para dentro da alma. O nevoeiro dançava a dança delicada de um enigma. Padre Luis benzeu-se, ajoelhou-se e implorou a Deus para que, finalmente, lhe tivesse dado o sinal, os sinais. Porém, estava só, irremediavelmente só na manhã brumosa, não obstante, seu coração celebrasse uma despojada e cuidadosa esperança. Podia ser que naquela manhã fantasmagórica talvez se abrisse para a vivência da revelação, da epifania, pura e dura, como devia ser a fé absoluta, mesmo que loucura fosse ou por isso mesmo. Talvez aquela manhã invisível traduzisse a experiência que tanto almejara. O mergulho na bruma espessa poderia ser uma passagem para a possibilidade de viver o profundo mistério que só a fé vivida em êxtase poderia oferecer.
            Ah, Senhor, é preciso andar na corda bamba, entregar-se a um abismo profundo por onde se vai despencando até o sem-fim das coisas Isso é a fé, um trapézio em que um cego mergulha na Nada..
            Aquela manhã única repetia os sonhos que tivera na infância, quando ainda o chamamento era uma hipótese remota e não uma vocação precoce, como lhe dissera Frei João, amigo e confessor da família. Dissera-lhe que fora escolhido do Senhor para Sua missão. Acreditou e fez-se padre. Esta nova vida, porém, ficou esmagada na melancólica rotina de um cotidiano medíocre em cidade do interior. Agora, era o nevoeiro que o desafiava. E se não puder consolar seu rebanho? E se não for capaz de conviver com a prova a que era exposto? Que dia seria este quando tudo embranquecera o só lhe restavam as orações, e o terror. Então esta era a prova, era esta a passagem pelo despenhadeiro capaz de restituir-lhe uma paz que nunca teve e de que, no entanto, precisa.

            Aos poucos, tímidas e medrosas, as beatas foram se chegando, silenciosamente, para a missa das sete. Como sempre, nenhuma delas ousou dirigir-lhe a palavra ou articular a pergunta que seria óbvia: Padre Luis, o que se passa? Que neblina é esta? Estamos sendo castigados? Quando vai passar? Por Deus que lhe pouparam as explicações, que ele também não as tinha. Muito menos poderia inventar alguma, estando ele mesmo tomado de surpresa. Mas era assim este povo: sempre silencioso, olhando direto em seus olhos, confiantes no que sua palavra representava. Este povo é bom porque é tolo, ou é tolo porque é bom? Deus, teria tempo de descobrir?
            Mas podemos perceber que Padre Luis estava feliz e consolado. Afinal, alguma coisa extraordinária acontecia-lhe, alguma coisa não natural que se abre para os Mistérios que são os claros sinais da presença divina. Afinal, as longas rotinas terminaram. Para isso se tornara padre, para que seu enigma pessoal e último pudesse ser decifrado. Enfim, os dias iguais e sem sentido serão preenchidos pelo inusitado nevoeiro a justificar sua vida, a dar-lhe um sentido que nunca tivera.Para isto é que se fizera religioso, então, por que a surpresa?.
            Ele ali, agora, envolto pela névoa, contemplado pelas beatas como um santo em seu andor, ele desfrutava a glória de viver o inexplicável por meio do qual seria possível tocar o doce manto da santidade.
            Lentamente, dirigiu-se ao centro do altar, ajoelhou-se na direção do Cristo crucificado e abriu os braços em cruz. Ergueu o rosto pálido, balbuciou uma breve oração e levantou-se.
            Agora, de frente para os poucos fieis que se arriscaram a sair de casa naquela manhã, Padre Luis pronunciou, pausadamente:
            Bem-vindos à casa do Senhor.
            Há quem tenha visto em torno da figura magra um halo de luz, esplendorosa, como que celebrando alguma coisa gloriosa e irrepetível.