8
quando percebeu algum movimento dentro
do quiosque de seu Antonio, confirmado pelas luzes que se acenderam, José
Inácio levantou-se do banco e bateu, levemente, no balcão que servia também de
porta. Fê-lo discretamente, porque seu Antonio, lá do jeito dele, não gostava
de que o acordassem para abrir o bar. Pelo que se lembrava, nunca havia
sucedido de ir à pesca e a birosca estar fechada. Porém naquele dia, ou ainda
súbita noite, fechada estava. Bateu um pouco mais forte, porque ninguém
atendera ao primeiro chamado. Com a insistência das batidas, seu Antonio
ruminou alguns impropérios impublicáveis, com o insistente sotaque lusitano,
sublinhado pelo aviso e a secura de sua língua ríspida : Já estou, já estou lá. .Não podes esperar? . Foi justo o tempo de a
porta-balcão abrir-se verticalmente e uma luz pálida dançar no meio da névoa.
De dentro dela, quase invisível, foi surgindo o rosto enfezado e mal desperto
de seu Antonio. José Inácio, em princípio, não sabia dizer se era um rosto
zangado ou apenas aborrecido, talvez fosse ambos. O rude proprietário,
contrariado, vociferou: Mas que é isto?
De onde vem esta neblina toda? Quase perdi a hora.. José Inácio disse-lhe
que não sabia, mas que era tudo muito esquisito e que ele precisa tomar café
para pegar o barco. Mas que barco? Estás
louco? Não percebes que estará tudo ao alvoroço? Estamos com estas neblinas e
não se sabe o que fazer. Tens de esperar”. José Inácio logo percebeu que
nenhum pescador iria se aventurar mar a dentro com aquele clima. Indagou do
velho Antonio se ele sabia de mais alguma coisa, além do que se podia ver; se
as rádios anunciaram alguma novidade. Foi informado, enfim, que nada se
comunicava, nem as rádios, nem os telefones, e que ele de nada sabia, porém
muito temia, que estas coisas misteriosas tinham partes com o diabo, onde já se
viu uma coisa dessas?
Ficaram os dois conjeturando entre
temores, de voz baixa para não serem ouvidos não se sabe por quem, quando
receberam de dona Olívia, a mulher de seu Antonio, a notícia de que estava a
cidade completamente isolada do resto do mundo, que ninguém entrava e nem saía,
nem mesmo os ônibus.Uma vizinha tinha-lhe contado como o filho dela tentara ir
para o trabalho e não fora possível, devido à neblina. Havia uma grossa camada
de nuvens de modo que tudo estava a cegar os olhos. Se for possível, mais
tarde, se a neblina recolhesse um pouco,
disse ela que ia rezar na igreja, com as outras mulheres, a ver se Padre
Luis sabia de alguma coisa. Seu Antonio procurava, no rádio, informar-se de
alguma novidade, porém, de nada adiantava porque o que se ouviam eram os ruídos
estridentes do alto-falante, chiando como ovos estrelados, ou gotas de chuva no
chão. José Inácio entendeu que esta situação estava indo muito mal e que o
mundo poderia estar mesmo se acabando, conforme diziam os crentes, leitores da
bíblia, principalmente na parte do Apocalipse, como se lembrava sua memória de
menino inquieto a fazer o catecismo na distante vida de criança. Sentiu algo
como uma espécie de medo sem se importar com o fato de que era marmanjo
tarimbado nas armadilhas do clima, que todo pescador tem de saber lidar com o
tempo e os nevoeiros, já os enfrentara tantas vezes.Eram como as sereias, é
preciso não lhes ouvir as cantigas que
passam logo, como todo cais que é uma saudade de pedra, afinal, tudo o que vem
do mar passa depressa. Mas, neste caso, José Inácio temia não saber de onde
vinha tamanha esquisitice. Tomou, então, a iniciativa de sugerir que fossem, seu
Antonio e ele, até o centro da cidade, à praça da Igreja, caminhando, isto é,
tateando por entre a névoa espessa. Vamos
para a praça, quem sabe lá nos dizem o que está a acontecer? Seu Antonio,
com alguma vacilação, concordou, não sem antes sugerir que fossem com muito
cuidado, era como andar no escuro, sem se enxergar sequer um dedo antes dos
narizes. Porém, seu Antonio cerrou as portas de seu quiosque e, cautelosos,
partiram ambos para uma caminhada sem preciso rumo e de curto horizonte,
conforme supunham eles, por entre a névoa branca.
E quem pudesse vê-los certamente os
imaginaria parvos: como dois cegos (quando um cego ajuda o outro, vão ambos
cair no abismo, assim disse o Senhor), de braços dados, cada qual com sua vara
de bambu, à guisa de bengalas, iam passoslentamente, medindo o chão para não
tropeçarem. E lá se foram ambos em busca da decifração deste enigma em que a
cidade fora tomada, pelo denso nevoeiro, e se fechou em si mesma, sem contato
com o mundo exterior.
Não cabe agora, desavisado leitor,
argumentar que estes dois homens ingênuos tivessem condições de decifrar
tamanho mistério, reservado apenas à ciência dos iniciados, portanto, a vontade
que lhes movia não era a de conhecer o nevoeiro, mas de saber de onde vinha.
Também no fundo da memória do enfezado Antonio soprava uma longínqua ideia de
que o sal do mar imenso, a banhar a cidade, de lágrimas fosse, mas não as de
Portugal e sim as dessa cidade tomada por tão grande mistério e que também de
lágrimas fossem as nívias névoas que embaçavam a visão. Ou mesmo que esta
decisão fosse parte de uma vontade cega que a gente não tem a menor ideia de
onde vem.
O temor que sentiam não foi capaz de
detê-los, muito menos a prudência; esta mandava que ficassem no mesmo lugar,
aguardando os acontecimentos, as notícias, mas a curiosidade humana é sempre
mais eloqüente do que qualquer prudência, ainda mais no velho português, pois
se de prudências e cautelas fosse seu povo feito, não teriam recortado o mundo
à imagem e semelhança de sua ilustre Pátria Lusitana, nem teriam eles
conquistado tão longínquas terras à roda do mundo.. A vastidão do império
dilatado, da fé e da conquista, não fora, com certeza, obra de prudência mas de
destemor, de ousadia, ou desta coisa também cega que é a vontade de poder de
todo um povo, numa façanha que jamais se repetiria.. Então, partiu com José
Inácio, tateando através da cerração que mal os deixava respirar. No entanto,
caminhar era preciso, viver, nem tanto, ou talvez. Por isso, seguiram os dois o
caminho em frente.
Quem os visse, destemidos embora
cuidadosos, não traduziria esta mera aventura numa metáfora de uma conquista ou
de um povo heroico, mas a simples e banal vontade de saber o que se passava com
a cidade recoberta pelo ruço e pelo assombro. Afinal, todas essas grandezas
aqui relembradas não passam de apêndices de um possível romance.
Pois é assim mesmo que se dão as coisas: muitas vezes, o que é simples
curiosidade ou rotineira virtude de inquietar-se, resulta em profundos
mistérios da alma humana. Que estranho que é esse bicho-homem.