“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 21 de abril de 2012

7º capítulo


7  
    o velho jornalista, de fatigadas jornadas, decidira morar na cidade, à beira-mar, fazia pouco tempo. Esperava ali terminar seus dias, e, para desenfastiar-se, escrevia suas matérias sem grandes cuidados, nem brilho, vendendo-as a algum jornal da capital, mais por hábito do que por ofício propriamente dito. Escrevia lentamente, com a cara enfiada no papel, esforçando-se por enxergar as palavras em meio à névoa e a cegueira que lhe mortificava, agora agravada pelo nevoeiro em torno de si e não apenas o dos olhos cansados. Já não fazia uso da velha máquina de escrever, antes preferia o lápis, melhor dizendo, vários lápis com que rabiscava, freneticamente, as frases e compunha o texto. Gostava de imaginar-se Fernando Pessoa, com seus muitos cadernos, mas não possuía baú, que isto era para os grandes e ele era apenas um velho jornalista esperando o tempo se cumprir e ele emigrar para a terra ignota.
            Ao despertar, naquela manhã enevoada e fatídica, Borges, (veja só, era esse seu nome!) pressentiu (vícios da profissão) que ali estava uma ótima matéria para uma reportagem, imaginando o que mais tarde confirmou-se: só acontecia em nossa cidade. Nem foi preciso coletar detalhes, bastava-lhe a expressão alarmada dos vizinhos, entreouvidos no apartamento em frente, para que adivinhasse a importância dos acontecimentos. Podia vislumbrar as sombras na paisagem e os rostos tensos, nas janelas. Por isso, imediatamente, sentou-se e começou a escrever uma estória, ou uma história, dependendo de onde as circunstâncias conduzissem e os fatos vigessem. Escrevia por hábito para não perder contato com seu passado profissional. Ou escrevia pelo estilo, que é onde estas coisas se decidem. Afinal podia ser uma história/estória que teria como fundo o nevoeiro exclusivo, a bruma na paisagem, como nos seus olhos sem luz, uma cegueira ecumênica, por todos partilhada, nem por isso menos bizarra.
            Sem hesitação, escreveu a página de abertura, começando pelo método. Para isto, anotou cuidadosamente, no início de seu relato, as condições necessárias para que se tomasse nota do “verídico relato dos acontecimentos extraordinários”, conforme reza a boa técnica jornalística. Acompanhe, leitor, as palavras iniciais do autor, cujo texto foi enviado a uma editora, mas isso só depois de transposto para as facilidades da internet, não por ele, mas por uma secretária contratada que o visitava três dias por semana, trazendo um notebook onde digitava os garranchos do cego.


            Há de contar o autor uma só história, há de defini-la para a tranqüilidade do leitor e do editor, para que se distinga o falso do verdadeiro, o verdadeiro do verossímil; há de construí-la pela razão e confirmá-la com os exemplos; há de sustentá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias que se hão de seguir; com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às incredulidades do leitor que se devem também evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer a curiosidade insaciável de quem quer saber da vida alheia, mas há de se impugnar e refutar, com toda força, as imagens gratuitas, o lugar comum. Há de satisfazer às dificuldades, impugnar e refutar com toda força os argumentos dos descrentes e depois disso, há de colher, há de concluir, de convencer, há de acabar. Isto é a reportagem, isto é escrever um relato e o que não é isto, é ruído ou excessivo uso da fala. A história pode ter muita variedade de conflitos, mas há de nascer da mesma situação, continuar e acabar com ela.

            Está o leitor confuso? Ora veja: um nevoeiro tem razões, tem causas, tem forma, tem conseqüências, mas não sabemos. Assim há de ser a matéria desta narrativa. Há de ter razões fortes e sólidas, porque há de ser fundada no castigo; há de ter causas enraizadas na culpa. Desta culpa, hão de nascer diversos sofrimentos, não importa quem seja o sofrente, posto que o culpado é sempre ele mesmo, e é preciso haver redenção e premiações ao final, para que o leitor se sinta recompensado do tempo perdido e ele, Borges, tenha cumprido seu destino. Assim foram escritas todas as histórias do mundo, além de inesgotáveis enredos, pelos sublimes cegos: Milton, Homero e ele, Borges, o mais de todos modesto. Valia, no entanto, escrever, sempre, que é como respirar; escrever mesmo para que ninguém lesse. Só este imenso prazer de perceber as palavras engatadas umas nas outras, com suas sonoridades, com seus sentidos entortados e, algumas vezes, combinadas de um modo tal que não parecia sair de uma cabeça fatigada. Era como se existissem por si mesmas, com vida própria, além do bem e do mal..

            E assim, escreveu o furtivo narrador os fatos que o leitor lerá, como se eles devessem ter alguma explicação. O que ele não sabia é que, no mesmo instante, quase todos os relógios pararam na mesma hora, enquanto a cidade inquieta surpreendia o sol  a bruxulear como uma auréola pálida em meio à cerração. Também é bom que se esclareça: as razões da neblina que, por enquanto, estavam fora do alcance individual dos habitantes, restavam em algum fenômeno natural que nos ocorre, independentemente de sermos nós bons ou maus sujeitos ou que tenhamos ou não temor de Deus. Porque, numa situação como essa, nem o Padre Vieira, que com certeza parece emprestar seu estilo ao pobre jornalista, pode alguma coisa declarar. Isto posto, a cidade se esforçava em prosseguir com sua rotina, pois não é este animal humano fruto da queda e da desobediência, ou vice-versa, que não sabe conformar-se com os limites que se lhe impõem Deus e a Natureza, nisto consistindo sua rebeldia, no que muito se parece com Lúcifer, o anjo desobediente? Com quem afinal aprendeu o homem a não contentar-se com o que lhe é dado e romper as constrições da natureza, como aquele semideus cujo fígado repetia-se infinitamente, para satisfazer a teimosia  e o apetite dos abutres?
            O faro apurado de cego não perdeu a trilha por onde iria esta história, uma história que confinava, em um espaço restrito, alguns homens e mulheres, vivendo os extremos de uma fantástica situação, medindo-se até o ponto de poder esticar a tênue corda da incredulidade. O que se pôde descrever das brumas em um Castelo na Dinamarca, com as desventuras de um jovem príncipe chamado Hamlet; aqui se poderá também repetir. Talvez aqui, como lá, exista alguma coisa podre, embora aqui não seja um reino; na verdade, talvez aqui, como lá, devêssemos escrever que o resto é literatura, ou silêncio, no que dá no mesmo. Pois o véu que recobre os nossos olhos não permite que se veja o fundo das coisas, tal como deviam ser. Aliás, esta bruma que agora recobre a cidade também existe, de uma outra maneira, no resto do mundo, na medida em que oculta aos olhos o que pode ser chamado de realidade, ou verdade, ou simplesmente as coisas postas a nosso olhar, ainda que, ironicamente, aqui se trate de um cego.
            Enfim, não se pode saber ao certo o que está havendo neste lugar, mas havia suspeita de alguns deslizes. Como um dia alguém escreveu que por toda parte, nesta cidade, há corrupção; desgraçadamente, nesta terra coberta de nuvens, vai se fazendo da corrupção uma indústria. Mas que importa isto neste momento? O que pretende este ocasional narrador/repórter ou repórter/narrador, Borges, é contar uma história em que um nevoeiro inexplicável invade a vida das pessoas, mexe com suas rotinas, altera pequenos projetos de vida e ninguém sabe por que acontece, de onde vem, para onde vai, nem se é castigo divino ou obra inconclusa de alguns homens.
            Já há suficiente mistério e fantasia entre o céu e a terra. Estes fatos quase valem por si mesmos, principalmente se não se repetiam em outros lugares. No momento, com a luminária ligada e algumas centenas de linhas desenhadas na folha iluminada, o jornalista espera, como se em tocaia estivesse, pelo próximo passo a ser dado. Com o lápis suspenso, espera a frase que vem.
            Não obstante, nem um pouco de céu se pode ver por entre o espesso ruço, nem era vã a filosofia com que se tratam os Mistérios. Borges mergulhava na dupla cegueira, a sua paisagem para dentro e a paisagem em névoa, para fora.
            Enfim, conheceu o que não conheceram os gregos: a incerteza e isto era doloroso, mesmo para um cego que nela vivia desde que a noite em seus olhos pousou, há pouco tempo, talvez contado em meses.
            Um velho debruçado sobre uma folha de papel, a manhã enevoada, um silêncio côncavo, o verde opaco do mar, o dia que começava...tudo isso parece uma pintura medieval na qual se retrata o exercício da memória e da literatura.

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