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o velho jornalista, de fatigadas jornadas, decidira morar
na cidade, à beira-mar, fazia pouco tempo. Esperava ali terminar seus dias, e,
para desenfastiar-se, escrevia suas matérias sem grandes cuidados, nem brilho,
vendendo-as a algum jornal da capital, mais por hábito do que por ofício
propriamente dito. Escrevia lentamente, com a cara enfiada no papel,
esforçando-se por enxergar as palavras em meio à névoa e a cegueira que lhe
mortificava, agora agravada pelo nevoeiro em torno de si e não apenas o dos
olhos cansados. Já não fazia uso da velha máquina de escrever, antes preferia o
lápis, melhor dizendo, vários lápis com que rabiscava, freneticamente, as
frases e compunha o texto. Gostava de imaginar-se Fernando Pessoa, com seus
muitos cadernos, mas não possuía baú, que isto era para os grandes e ele era
apenas um velho jornalista esperando o tempo se cumprir e ele emigrar para a
terra ignota.
Ao despertar, naquela manhã enevoada
e fatídica, Borges, (veja só, era esse seu nome!) pressentiu (vícios da profissão)
que ali estava uma ótima matéria para uma reportagem, imaginando o que mais
tarde confirmou-se: só acontecia em nossa cidade. Nem
foi preciso coletar detalhes, bastava-lhe a expressão alarmada dos vizinhos,
entreouvidos no apartamento em frente, para que adivinhasse a importância dos
acontecimentos. Podia vislumbrar as sombras na paisagem e os rostos tensos, nas
janelas. Por isso, imediatamente, sentou-se e começou a escrever uma estória,
ou uma história, dependendo de onde as circunstâncias conduzissem e os fatos
vigessem. Escrevia por hábito para não perder contato com seu passado
profissional. Ou escrevia pelo estilo, que é onde estas coisas se decidem.
Afinal podia ser uma história/estória que teria como fundo o nevoeiro
exclusivo, a bruma na paisagem, como nos seus olhos sem luz, uma cegueira
ecumênica, por todos partilhada, nem por isso menos bizarra.
Sem hesitação, escreveu a página de
abertura, começando pelo método. Para isto, anotou cuidadosamente, no início de
seu relato, as condições necessárias para que se tomasse nota do “verídico
relato dos acontecimentos extraordinários”, conforme reza a boa técnica
jornalística. Acompanhe, leitor, as palavras iniciais do autor, cujo texto foi
enviado a uma editora, mas isso só depois de transposto para as facilidades da
internet, não por ele, mas por uma secretária contratada que o visitava três
dias por semana, trazendo um notebook
onde digitava os garranchos do cego.
Há
de contar o autor uma só história, há de defini-la para a tranqüilidade do leitor
e do editor, para que se distinga o falso do verdadeiro, o verdadeiro do
verossímil; há de construí-la pela razão e confirmá-la com os exemplos; há de
sustentá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias que se hão de
seguir; com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às
incredulidades do leitor que se devem também evitar; há de responder às
dúvidas, há de satisfazer a curiosidade insaciável de quem quer saber da vida
alheia, mas há de se impugnar e refutar, com toda força, as imagens gratuitas,
o lugar comum. Há de satisfazer às dificuldades, impugnar e refutar com toda
força os argumentos dos descrentes e depois disso, há de colher, há de
concluir, de convencer, há de acabar. Isto é a reportagem, isto é escrever um
relato e o que não é isto, é ruído ou excessivo uso da fala. A história pode
ter muita variedade de conflitos, mas há de nascer da mesma situação, continuar
e acabar com ela.
Está o leitor confuso? Ora veja: um
nevoeiro tem razões, tem causas, tem forma, tem conseqüências, mas não sabemos.
Assim há de ser a matéria desta narrativa. Há de ter razões fortes e sólidas,
porque há de ser fundada no castigo; há de ter causas enraizadas na culpa.
Desta culpa, hão de nascer diversos sofrimentos, não importa quem seja o sofrente,
posto que o culpado é sempre ele mesmo, e é preciso haver redenção e premiações
ao final, para que o leitor se sinta recompensado do tempo perdido e ele,
Borges, tenha cumprido seu destino. Assim foram escritas todas as histórias do
mundo, além de inesgotáveis enredos, pelos sublimes cegos: Milton, Homero e
ele, Borges, o mais de todos modesto. Valia, no entanto, escrever, sempre, que
é como respirar; escrever mesmo para que ninguém lesse. Só este imenso prazer
de perceber as palavras engatadas umas nas outras, com suas sonoridades, com
seus sentidos entortados e, algumas vezes, combinadas de um modo tal que não
parecia sair de uma cabeça fatigada. Era como se existissem por si mesmas, com
vida própria, além do bem e do mal..
E assim, escreveu o furtivo narrador
os fatos que o leitor lerá, como se eles devessem ter alguma explicação. O que
ele não sabia é que, no mesmo instante, quase todos os relógios pararam na
mesma hora, enquanto a cidade inquieta surpreendia o sol a bruxulear como uma auréola pálida em meio à
cerração. Também é bom que se esclareça: as razões da neblina que, por
enquanto, estavam fora do alcance individual dos habitantes, restavam em algum
fenômeno natural que nos ocorre, independentemente de sermos nós bons ou maus
sujeitos ou que tenhamos ou não temor de Deus. Porque, numa situação como essa,
nem o Padre Vieira, que com certeza parece emprestar seu estilo ao pobre
jornalista, pode alguma coisa declarar. Isto posto, a cidade se esforçava em
prosseguir com sua rotina, pois não é este animal humano fruto da queda e da
desobediência, ou vice-versa, que não sabe conformar-se com os limites que se
lhe impõem Deus e a Natureza, nisto consistindo sua rebeldia, no que muito se
parece com Lúcifer, o anjo desobediente? Com quem afinal aprendeu o homem a não
contentar-se com o que lhe é dado e romper as constrições da natureza, como
aquele semideus cujo fígado repetia-se infinitamente, para satisfazer a
teimosia e o apetite dos abutres?
O faro apurado de cego não perdeu a
trilha por onde iria esta história, uma história que confinava, em um espaço
restrito, alguns homens e mulheres, vivendo os extremos de uma fantástica
situação, medindo-se até o ponto de poder esticar a tênue corda da
incredulidade. O que se pôde descrever das brumas em um Castelo na
Dinamarca, com as desventuras de um jovem príncipe chamado Hamlet; aqui se
poderá também repetir. Talvez aqui, como lá, exista alguma coisa podre, embora
aqui não seja um reino; na verdade, talvez aqui, como lá, devêssemos escrever
que o resto é literatura, ou silêncio, no que dá no mesmo. Pois o véu que
recobre os nossos olhos não permite que se veja o fundo das coisas, tal como
deviam ser. Aliás, esta bruma que agora recobre a cidade também existe, de uma
outra maneira, no resto do mundo, na medida em que oculta aos olhos o que pode
ser chamado de realidade, ou verdade, ou simplesmente as coisas postas a nosso
olhar, ainda que, ironicamente, aqui se trate de um cego.
Enfim, não se pode saber ao certo o
que está havendo neste lugar, mas havia suspeita de alguns deslizes. Como um
dia alguém escreveu que por toda parte, nesta cidade, há corrupção;
desgraçadamente, nesta terra coberta de nuvens, vai se fazendo da corrupção uma
indústria. Mas que importa isto neste momento? O que pretende este ocasional
narrador/repórter ou repórter/narrador, Borges, é contar uma história em que um
nevoeiro inexplicável invade a vida das pessoas, mexe com suas rotinas, altera
pequenos projetos de vida e ninguém sabe por que acontece, de onde vem, para
onde vai, nem se é castigo divino ou obra inconclusa de alguns homens.
Já há suficiente mistério e fantasia
entre o céu e a terra. Estes fatos quase valem por si mesmos, principalmente se
não se repetiam em
outros lugares. No momento, com a luminária ligada e algumas
centenas de linhas desenhadas na folha iluminada, o jornalista espera, como se
em tocaia estivesse, pelo próximo passo a ser dado. Com o lápis suspenso,
espera a frase que vem.
Não obstante, nem um pouco de céu se
pode ver por entre o espesso ruço, nem era vã a filosofia com que se tratam os
Mistérios. Borges mergulhava na dupla cegueira, a sua paisagem para dentro e a
paisagem em névoa, para fora.
Enfim, conheceu o que não conheceram
os gregos: a incerteza e isto era doloroso, mesmo para um cego que nela vivia
desde que a noite em seus olhos pousou, há pouco tempo, talvez contado em
meses.
Um velho debruçado sobre uma folha
de papel, a manhã enevoada, um silêncio côncavo, o verde opaco do mar, o dia
que começava...tudo isso parece uma pintura medieval na qual se retrata o
exercício da memória e da literatura.
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