“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

segunda-feira, 30 de abril de 2012

8º capítulo


8
            quando percebeu algum movimento dentro do quiosque de seu Antonio, confirmado pelas luzes que se acenderam, José Inácio levantou-se do banco e bateu, levemente, no balcão que servia também de porta. Fê-lo discretamente, porque seu Antonio, lá do jeito dele, não gostava de que o acordassem para abrir o bar. Pelo que se lembrava, nunca havia sucedido de ir à pesca e a birosca estar fechada. Porém naquele dia, ou ainda súbita noite, fechada estava. Bateu um pouco mais forte, porque ninguém atendera ao primeiro chamado. Com a insistência das batidas, seu Antonio ruminou alguns impropérios impublicáveis, com o insistente sotaque lusitano, sublinhado pelo aviso e a secura de sua língua ríspida : Já estou, já estou lá. .Não podes esperar? . Foi justo o tempo de a porta-balcão abrir-se verticalmente e uma luz pálida dançar no meio da névoa. De dentro dela, quase invisível, foi surgindo o rosto enfezado e mal desperto de seu Antonio. José Inácio, em princípio, não sabia dizer se era um rosto zangado ou apenas aborrecido, talvez fosse ambos. O rude proprietário, contrariado, vociferou: Mas que é isto? De onde vem esta neblina toda? Quase perdi a hora.. José Inácio disse-lhe que não sabia, mas que era tudo muito esquisito e que ele precisa tomar café para pegar o barco. Mas que barco? Estás louco? Não percebes que estará tudo ao alvoroço? Estamos com estas neblinas e não se sabe o que fazer. Tens de esperar”. José Inácio logo percebeu que nenhum pescador iria se aventurar mar a dentro com aquele clima. Indagou do velho Antonio se ele sabia de mais alguma coisa, além do que se podia ver; se as rádios anunciaram alguma novidade. Foi informado, enfim, que nada se comunicava, nem as rádios, nem os telefones, e que ele de nada sabia, porém muito temia, que estas coisas misteriosas tinham partes com o diabo, onde já se viu uma coisa dessas?
            Ficaram os dois conjeturando entre temores, de voz baixa para não serem ouvidos não se sabe por quem, quando receberam de dona Olívia, a mulher de seu Antonio, a notícia de que estava a cidade completamente isolada do resto do mundo, que ninguém entrava e nem saía, nem mesmo os ônibus.Uma vizinha tinha-lhe contado como o filho dela tentara ir para o trabalho e não fora possível, devido à neblina. Havia uma grossa camada de nuvens de modo que tudo estava a cegar os olhos. Se for possível, mais tarde, se a neblina recolhesse um pouco,  disse ela que ia rezar na igreja, com as outras mulheres, a ver se Padre Luis sabia de alguma coisa. Seu Antonio procurava, no rádio, informar-se de alguma novidade, porém, de nada adiantava porque o que se ouviam eram os ruídos estridentes do alto-falante, chiando como ovos estrelados, ou gotas de chuva no chão. José Inácio entendeu que esta situação estava indo muito mal e que o mundo poderia estar mesmo se acabando, conforme diziam os crentes, leitores da bíblia, principalmente na parte do Apocalipse, como se lembrava sua memória de menino inquieto a fazer o catecismo na distante vida de criança. Sentiu algo como uma espécie de medo sem se importar com o fato de que era marmanjo tarimbado nas armadilhas do clima, que todo pescador tem de saber lidar com o tempo e os nevoeiros, já os enfrentara tantas vezes.Eram como as sereias, é preciso  não lhes ouvir as cantigas que passam logo, como todo cais que é uma saudade de pedra, afinal, tudo o que vem do mar passa depressa. Mas, neste caso, José Inácio temia não saber de onde vinha tamanha esquisitice. Tomou, então, a iniciativa de sugerir que fossem, seu Antonio e ele, até o centro da cidade, à praça da Igreja, caminhando, isto é, tateando por entre a névoa espessa. Vamos para a praça, quem sabe lá nos dizem o que está a acontecer? Seu Antonio, com alguma vacilação, concordou, não sem antes sugerir que fossem com muito cuidado, era como andar no escuro, sem se enxergar sequer um dedo antes dos narizes. Porém, seu Antonio cerrou as portas de seu quiosque e, cautelosos, partiram ambos para uma caminhada sem preciso rumo e de curto horizonte, conforme supunham eles, por entre a névoa branca.
            E quem pudesse vê-los certamente os imaginaria parvos: como dois cegos (quando um cego ajuda o outro, vão ambos cair no abismo, assim disse o Senhor), de braços dados, cada qual com sua vara de bambu, à guisa de bengalas, iam passoslentamente, medindo o chão para não tropeçarem. E lá se foram ambos em busca da decifração deste enigma em que a cidade fora tomada, pelo denso nevoeiro, e se fechou em si mesma, sem contato com o mundo exterior.
            Não cabe agora, desavisado leitor, argumentar que estes dois homens ingênuos tivessem condições de decifrar tamanho mistério, reservado apenas à ciência dos iniciados, portanto, a vontade que lhes movia não era a de conhecer o nevoeiro, mas de saber de onde vinha. Também no fundo da memória do enfezado Antonio soprava uma longínqua ideia de que o sal do mar imenso, a banhar a cidade, de lágrimas fosse, mas não as de Portugal e sim as dessa cidade tomada por tão grande mistério e que também de lágrimas fossem as nívias névoas que embaçavam a visão. Ou mesmo que esta decisão fosse parte de uma vontade cega que a gente não tem a menor ideia de onde vem.
            O temor que sentiam não foi capaz de detê-los, muito menos a prudência; esta mandava que ficassem no mesmo lugar, aguardando os acontecimentos, as notícias, mas a curiosidade humana é sempre mais eloqüente do que qualquer prudência, ainda mais no velho português, pois se de prudências e cautelas fosse seu povo feito, não teriam recortado o mundo à imagem e semelhança de sua ilustre Pátria Lusitana, nem teriam eles conquistado tão longínquas terras à roda do mundo.. A vastidão do império dilatado, da fé e da conquista, não fora, com certeza, obra de prudência mas de destemor, de ousadia, ou desta coisa também cega que é a vontade de poder de todo um povo, numa façanha que jamais se repetiria.. Então, partiu com José Inácio, tateando através da cerração que mal os deixava respirar. No entanto, caminhar era preciso, viver, nem tanto, ou talvez. Por isso, seguiram os dois o caminho em frente.
            Quem os visse, destemidos embora cuidadosos, não traduziria esta mera aventura numa metáfora de uma conquista ou de um povo heroico, mas a simples e banal vontade de saber o que se passava com a cidade recoberta pelo ruço e pelo assombro. Afinal, todas essas grandezas aqui relembradas não passam de apêndices de um possível romance.
Pois é assim mesmo que se dão as coisas: muitas vezes, o que é simples curiosidade ou rotineira virtude de inquietar-se, resulta em profundos mistérios da alma humana. Que estranho que é esse bicho-homem.

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