“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 5 de maio de 2012

9 ° capítulo


9    sentado à cabeceira da vasta mesa, como convém aos poderosos, visivelmente irritado, Sua Excelência solicitou maiores informações. Coube ao secretário de Governo e responsável pela segurança, com a solenidade cautelosa que estava a exigir a situação, expor, com a brevidade possível, a situação. Em resumo, fomos tomados por umas nuvens espessas, umas nuvens brancas que ardem quando se respira dentro delas, por isso mesmo as janelas devem permanecer fechadas e o povo recolhido em suas casas. O senhor prefeito quando veio para cá deve ter visto que só se chega aqui com os faróis dos carros bem acesos e assim mesmo dirigindo com muito cuidado Apesar disto, não foi registrado nenhum incidente. Parece que o povo preferiu trancar-se em casa. O rosto de prefeito deixou transparecer impaciência; um suspiro e um discreto crispar de dedos, um leve assovio de lábios semicerrados e olhos idem foram o suficiente para o secretário acelerar o relato, com mais objetividade e brevidade para não ofender a paciência do ilustre ouvinte. Pois, como ia dizendo, senhor prefeito, não temos informes precisos. Só conseguimos saber que ninguém entra nem sai da cidade, pelo menos desde as seis e quarenta e oito que é quanto marcam os relógios de todas as casas, menos o da matriz, que esse parece não ter parado e funciona regularmente, pelo menos até agora.  O prefeito contraditou: Mas afinal, alguém pode me informar o que se passa? Que tipo de coisa aconteceu de ontem para hoje, foi como Sua Excelência reagiu ao relato, sem esperar resposta plausível.Embora se saiba que a surpresa de uma excelência deve ser sempre tomada como hipérbole ou véspera de uma inamovível irritação que pode custar a cabeça de alguém. Mas isto é sempre a mesma coisa desde que o mundo é mundo.
            As informações, no entanto, prosseguiam em cascatas de más novidades, alarmantes todas. De todos os lados, surgiam histórias semelhantes, conforme chegavam à prefeitura pela voz dos informantes: pessoas envoltas em névoa, tateando pelas ruas; os postos de saúde e os hospitais repletos de mulheres; velhos e crianças com dificuldades respiratórias; os ônibus já não circulavam, os telefones, mudos; e ninguém entrava ou saia da cidade, embora nenhuma lei impedisse a circulação. Em resumo (como apreciava Sua Excelência), nem mesmo a base militar, instalada na cidade vizinha, conseguia saber com precisão o que ocorrera. Na verdade, a única coisa que se sabia com certeza era que o fenômeno se restringia a este município, a esta cidade, nenhuma outra região se apresentava com problema semelhante, muito ao contrário: o sol brilhava e o dia era esplêndido por todo o resto do país. A situação que se apresentava era absolutamente única, incompreensível e assustadora. E nem adiantava usar máscaras de oxigênio, como alguém sugeriu, porque a acidez da névoa corroia, em poucos minutos, os tubos de borracha; e a vítima sucumbia em míseros segundos.
            A cada minuto, mesmo sem os telefones operando, as autoridades constituídas procuravam pelo menos dar a entender que tudo estava sob controle, não obstante a imprecisão das orientações. Estavam em um teatro que exigia dos atores toda seriedade para enfrentar a gravidade do momento. Era preciso evitar alguma perturbação da ordem e, para isto, as forças policiais foram convocadas, como puderam, para um plano de emergência, que se mostraria frágil, caso fosse realmente necessário, até porque não havia plano de emergência algum para uma situação como esta. Como sempre afirmou a oposição, este governo era incompetente, incapaz e corrupto, portanto um desastre, portanto muito abaixo do imenso desafio que se fazia presente. Já ninguém esperava um acontecimento deste porte, de modo que, sem uma resposta que pudesse tranqüilizar a população, o governo optou pelo silêncio; o povo, pelo boato, e a oposição, pela denegação. Pelo silêncio, para evitar qualquer declaração desastrosa e, para enfrentar a boataria, era importante difundir a idéia de que o fenômeno climático que ocorria poderia ser passageiro, fruto do descontrole climático que passaria em breve e que precisávamos de tranquilidade.. Mas o boato, com a força da imaginação e a liberdade de julgamento, sem nenhum compromisso com a ciência ou os saberes instituídos, preferiu apostar numa interferência divina, um castigo, que somente com orações poderia ser debelado, conforme sustentavam os opositores, este governo é a maldição do anticristo. A custa de breves recados transmitidos oralmente, convocou-se o povo para as orações, nos templos de todas as religiões, com o beneplácito da prefeitura que mantinha certo controle sobre alguns líderes religiosos, à custa, claro, de benefícios financeiros, sempre negados com indignação e ameaça de excomunhão ou expurgo ou interdito ou anátema a quem ousasse levantar esta leviandade, embora o conforto com que viviam os beneficiários do governo fosse evidente. Neste ponto, o poder  é sempre muito eficiente, como, aliás, acontece a toda hora no país e quiçá no mundo, que isto de política é sempre um murmurar de coisas indignas e de troca de uns tantos favores, mesmo entre religiosos contidos em sua fé, mas não tanto. É uma regra atemporal, que vale para todas as latitudes conhecidas, quiçá desconhecidas também. Isto de políticas é sempre o fel da desumanidade misturado com cinismo, e um certo talento para fazer-se um santo em busca da salvação das almas penadas. Olha que este nevoeiro está mais dentro das pessoas que fora delas!
            No entanto, a vida estava paralisada já havia mais de cinco horas, conforme mostrava o relógio da matriz, cujos ponteiros só eram visíveis para quem subia ao topo de torre e de lá pudesse tatear os ditos ponteiros, deduzindo-lhes as horas. Tarefa, aliás, que coube ao Manuelzinho, menino de prováveis quatorze anos inexatos, franzino e ágil, que subiu até o topo da matriz, na torre do relógio, e de lá de cima berrava as horas para quem, no meio do nevoeiro, pudesse e quisesse ouvir e com isso ganhou destaque nas histórias que se contarão depois. Desse modo, tornou-se personagem importante no enredo deste dia, que seria contado pelos anos vindouros, até quando fosse ele um velho matreiro, sentado na praça, ganhando uns trocados dos turistas que apreciavam ouvir estas lendas, com toda certeza inventadas por um velho doido, mas simpático. E que cidade não tem seus velhos loucos e patuscos? Ora, quem acreditaria numa cidade afogada por um nevoeiro? Só por invenções da loucura. Só não sabiam eles que a loucura é apenas outra maneira de ter razão, ou de se antecipar à própria razão. Mas sabemos nós que os loucos e somente os loucos dizem a verdade.
            Isso antes de os relógios pararem definitivamente, mesmo o relógio da torre que, às dez horas e vinte e três minutos, cessou de girar, situação que o povo imediatamente considerou mais uma prova  da maldição que caíra sobre o município.
            Terminada a reunião, reuniram-se os senhores secretários com o prefeito, em seu gabinete, para, secretamente, considerarem a situação “periclitante”, conforme mencionou Sua Excelência, já com certo fastio, porém alguma inquietação, sabedor que era da responsabilidade dele solucionar o problema provavelmente insolúvel.
            Da janela do gabinete, podia-se ver a massa da branca nuvem envolvendo toda a praça. Já não se podia enxergar o topo das árvores, porém os milhares de vultos humanos, deslizando no meio da névoa, iam ocupando os arredores do prédio e, como se obedecessem a um comando invisível, acercavam-se uns dos outros em surdas conversações na tentativa de compreender o incompreensível. Alguns rezavam, ajoelhados, nos degraus da Matriz, outros se abraçavam comovidamente; poder-se-ia dizer, se fosse o caso, que se tratava de uma cena de cinema antigo e romântico, tal o afeto com que se encerravam uns nos braços dos outros. Alguns ainda, impacientes, andavam de um lado para o outro, tensos, anunciando algum desastre inevitável ou terrível desgraça. Nem a pequena auréola solar que se esforçava por trazer um pouco de luminosidade pálida e branca fora capaz de infundir naquelas pessoas alguma esperança.
            Visto assim, de longe, aqueles vultos humanos, de mãos dadas, corpo com corpo, abraçados e protegidos pelo peso de seus corpos, pareciam traduzir o amor fraterno como um sentimento que nos é capaz de unir e tornar suportável o sofrimento, por mais incompreensível. A ironia permite dizer que poderiam ser, afinal, felizes por se amarem tanto, não fosse isto o resultado de um temor devastador. Afinal, é do medo e do terror que aprendemos a vida. Aquele povo tinha de viver com sua própria vontade e, se possível, com sua perdida alegria.
            Não se ouvia tanto falar em fim do mundo? Não eram pregações dos pastores, também do padre Luis, cujas vozes erguiam-se corajosas, avisando os fiéis da iminência do apocalipse, da destruição da cidade, como acontecera a tantas outras, dito no Velho Testamento? Não eram as escatologias coisas desse mundo? O nevoeiro estranho e silencioso bem poderia ser o começo da profecia que enchia de terror os sonhos daqueles sofridos moradores.
            O povo nas ruas, nas praças, nas avenidas ainda não era tão numeroso, porém era suficiente para demonstrar a inquietação de suas almas. Quantas coisas ficariam pelo caminho se estivesse o mundo por se acabar? Quantas histórias interrompidas, amores não declarados, mentiras por esclarecer, verdades por dizer, filhos sem futuro, destinos brutalmente negados não em fogo ou em água, como já acontecera, mas numa prosaica, estúpida névoa branca que não deixava respirar direito, a arder nos olhos. Nem sequer podia-se ter o consolo da uma explicação racional. Ah, sim, a vida é sempre fantástica quando se tem de enfrentar o improvável.
            Ai que aquilo que somos (e somos o que não somos, e o que nos é negado), está sempre adiante de nós mesmos, sempre nos esperando para ser. E agora já não poderemos mais ser, porque este lugar, onde está quem somos, não mais existirá, e não se pode ser algo sem um lugar. Pode-se chamar a isto de vida? Ou de morte?
            A que estranhos mistérios pode conduzir um simples nevoeiro numa cidade qualquer! Quantos desafios a enfrentar para se saber o que é, justamente partindo da escuridão de uma névoa.
            Os dias deverão se arrastar lentamente, na fluidez da bruma. Nada parecia indicar o fim do nevoeiro, se seria naquela noite ( quando chegasse) ou talvez no fim da tarde. Seria, de todo modo, aterrador viver na escuridão da noite cercado pela névoa, com medo, com fome, sem poder vislumbrar as ruas e as esquinas. Havia de ser horrível perder-se no mundo abafado, escuro, sem poder ouvir uma notícia, uma nota, um alento, só o mar, desfolhando-se em ondas, na praia.
            Mas havia de ter uma razão, um lugar de onde tudo isto vinha, um lugar talvez não tão longe daqui. Talvez tão próximo que sequer podíamos ver.

Nenhum comentário:

Postar um comentário