“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

segunda-feira, 21 de maio de 2012

11º capítulo


            11
    livia e a mãe sentaram-se juntas no sofá da sala e assim permaneceram, mãos entrelaçadas, contemplando a cerração implacável embaçando a janela em frente. Nenhuma delas pronunciou qualquer palavra . Os relógios congelados indicavam sempre a mesma hora, as televisões, os aparelhos de rádios, até os vizinhos se recolheram em prudente silêncio. Não se pode saber quanto tempo assim permaneceram, uma vez que o único relógio funcionando era o da igreja matriz, na praça; assim diziam, e mesmo que fosse possível medir o tempo, as duas mulheres permaneceriam mudas, o que não significa incomunicabilidade. Ao contrário, ambas preferiam o silêncio e com isto já se dizia o essencial. Pela janela aberta, a bruma bailava branca branca branca, ácida, densa, opaca, impedindo a passagem dos sons, de modo que o mundo parecia uma caixa de vidro onde quase todos os ruídos eram abafados. A névoa penetrava pela janela da sala, recobria os móveis, tudo em se tornando difusa silhueta por dentro da pálida cerração. A sala invadida de palidez figurava um mundo absurdamente volátil. Um pouco depois, Lívia levantou-se, cerrou a janela e voltou para o sofá, sentou-se ao lado da mãe. Subitamente, agitou-se nervosa, inquieta, pôs-se a caminhar de um lado a para o outro: Mãe, tenho de sair, tenho de chegar ao trabalho Preciso saber o que está acontecendo. Surpreendida com a decisão, a mãe alarmou-se: que o acontecido era imprevisível, que podia ser perigoso, que isto era algum castigo, que todos vamos morrer, é o fim do mundo, que o pastor já diria se ali estivesse: o apocalipse está chegando, este mundo de pecados contra a Palavra está com seus dias contados. Só vão sobreviver os nossos, os de nossa igreja, eu vi, Deus falou comigo E você, filha, nunca se importou. Agora veja com os próprios olhos. Lívia tentou ser mais paciente e gentil. A mãe não tinha o que temer se permanecesse em casa, mesmo sozinha; porém ela devia sair, tinha de ver o que estava acontecendo com as pessoas, com as ruas, com a cidade, com a vida. Não havia telefone funcionando, nem internet, então só se podia saber de alguma coisa caso fosse pessoalmente. Vou até a Praça da Matriz e na prefeitura, lá, quem sabe, encontro alguém que possa dizer o que está acontecendo .Não tenha receio, mãezinha, eu sei  me cuidar. Nada demais vai me acontecer.
            Ignorou os elevadores, com medo de que a luz faltasse no meio da descida e ela ficasse presa, sem ninguém para acudir. Desceu, portanto, pelas escadas. Fê-lo cautelosamente, pelos quatro lances da escadaria, em meio ao ruço que invadia o prédio. Havia que desbravar os lanços da escada, sem poder enxergar com nitidez os degraus, mas valia a pena. Era preciso. Então, pé ante pé, bem calculadamente, Lívia alcançou o térreo, abriu a porta de vidro e mergulhou no imenso mar de brancas nuvens, ácidas, do que uma vez fora uma rua. Com os olhos ardendo, lacrimejando e com dificuldade de respiração, Lívia teimava em caminhar às cegas, em linha reta, no sentido da Praça, caminho que ela conhecia com precisão. Mesmo assim, muito cuidadosamente, Lívia desceu a rua e mal ouvia os carros passando: um ou outro, arranhando o asfalto. Um ou outro automóvel passava por ela, faróis acessos, bem devagar, sem que se pudesse quase ouvir o ruído dos pneus. Rodavam macios e discretos, sem destino certo, como se o motorista esperasse por algum sinal ou pista por onde seguir. Era antes um ruído abafado, como se os ouvidos estivessem entupidos de cerume. Na pele, a acidez da bruma dava a sensação de que lhe estavam arrancando os pelos com o desconforto de uma pinça cega. Lívia, embora com muito medo, caminhou por um tempo longo, guiada apenas pela intuição de seus passos, indo na direção da Praça da Matriz, onde esperava obter informações sobre o que se passava na cidade naquela manhã fatídica.
            Grande era o temor, mas grande também a vontade de sobreviver, de saber dos amigos, das pessoas conhecidas e, principalmente, de Rodrigo. O caminho de Lívia reproduzia a história de nossa espécie, acostumada a buscar a vida onde só existe a probabilidade da morte, mas sempre a vida triunfando em sua imortalidade coletiva. A vida, claro, da espécie, e não a vida do indivíduo, porque essa passa como um sopro. Não obstante, ela seguia cautelosamente, solitariamente, em busca de alguma resposta que lhe pudesse devolver a tranqüilidade, resposta que supunha estar na praça, nos relatos dos amigos de infortúnio, na comunidade dos habitantes deste imenso vazio branco, a bruma ácida na manhã. Lívia tinha certeza de que, havendo uma resposta para tudo isto, ela só poderia ser encontrada no meio dos outros, com os outros.
            Temia, sobretudo, cair numa espécie de vazio, de abismo, que a cerração escondia: um buraco sem fim, um abismo interminável, uma fratura no asfalto que a conduzisse para uma queda interminável. Era uma súbita sensação de pavor, como se, depois de cada passo, uma fenda se abrisse sob seus pés e ela mergulhasse num enorme buraco sem fim. Foi então que ouviu passos que caminhavam em sua direção, finalmente não estava sozinha. Alguém caminhava em sua direção, com os mesmos passos tateantes, vacilantes. Talvez não fosse uma pessoa apenas, mas duas, ou três, que os passos se misturavam, em quase secreta sincronia. Ao ouvi-los, porém, Lívia sentiu alguma coisa próxima da euforia ou de alívio. Sim, o medo agora podia ser compartilhado, não estava perdida. Apesar da névoa e da impossibilidade de vislumbrar seus parceiros de jornada, sabia que eram pessoas como as outras, em busca de alguma explicação e de algum sentido para tudo aquilo. É esse um destino nosso, dedicarmo-nos à decifração dos mistérios do mundo e pensar que tudo se resolve na posse de umas tantas dessas verdades impronunciáveis. É este sempre o vício da vaidade humana.

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