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livia e a mãe sentaram-se juntas no sofá da sala e assim
permaneceram, mãos entrelaçadas, contemplando a cerração implacável embaçando a
janela em frente.
Nenhuma delas pronunciou qualquer palavra . Os relógios
congelados indicavam sempre a mesma hora, as televisões, os aparelhos de
rádios, até os vizinhos se recolheram em prudente silêncio. Não se pode saber
quanto tempo assim permaneceram, uma vez que o único relógio funcionando era o
da igreja matriz, na praça; assim diziam, e mesmo que fosse possível medir o
tempo, as duas mulheres permaneceriam mudas, o que não significa
incomunicabilidade. Ao contrário, ambas preferiam o silêncio e com isto já se
dizia o essencial. Pela janela aberta, a bruma bailava branca branca branca,
ácida, densa, opaca, impedindo a passagem dos sons, de modo que o mundo parecia
uma caixa de vidro onde quase todos os ruídos eram abafados. A névoa penetrava
pela janela da sala, recobria os móveis, tudo em se tornando difusa silhueta
por dentro da pálida cerração. A sala invadida de palidez figurava um mundo
absurdamente volátil. Um pouco depois, Lívia levantou-se, cerrou a janela e
voltou para o sofá, sentou-se ao lado da mãe. Subitamente, agitou-se nervosa,
inquieta, pôs-se a caminhar de um lado a para o outro: Mãe, tenho de sair, tenho de chegar ao trabalho Preciso saber o que
está acontecendo. Surpreendida com a decisão, a mãe alarmou-se: que o
acontecido era imprevisível, que podia ser perigoso, que isto era algum
castigo, que todos vamos morrer, é o fim do mundo, que o pastor já diria se ali
estivesse: o apocalipse está chegando,
este mundo de pecados contra a Palavra está com seus dias contados. Só vão sobreviver os nossos, os de nossa
igreja, eu vi, Deus falou comigo E você, filha, nunca se importou. Agora veja
com os próprios olhos. Lívia tentou ser mais paciente e gentil. A mãe não
tinha o que temer se permanecesse em casa, mesmo sozinha; porém ela devia sair,
tinha de ver o que estava acontecendo com as pessoas, com as ruas, com a
cidade, com a vida. Não havia telefone funcionando, nem internet, então só se
podia saber de alguma coisa caso fosse pessoalmente. Vou até a Praça da Matriz e na prefeitura, lá, quem sabe, encontro
alguém que possa dizer o que está acontecendo .Não tenha receio, mãezinha, eu
sei me cuidar. Nada demais vai me
acontecer.
Ignorou os elevadores, com medo de
que a luz faltasse no meio da descida e ela ficasse presa, sem ninguém para
acudir. Desceu, portanto, pelas escadas. Fê-lo cautelosamente, pelos quatro
lances da escadaria, em meio ao ruço que invadia o prédio. Havia que desbravar
os lanços da escada, sem poder enxergar com nitidez os degraus, mas valia a
pena. Era preciso. Então, pé ante pé, bem calculadamente, Lívia alcançou o
térreo, abriu a porta de vidro e mergulhou no imenso mar de brancas nuvens,
ácidas, do que uma vez fora uma rua. Com os olhos ardendo, lacrimejando e com
dificuldade de respiração, Lívia teimava em caminhar às cegas, em linha reta,
no sentido da Praça, caminho que ela conhecia com precisão. Mesmo assim, muito
cuidadosamente, Lívia desceu a rua e mal ouvia os carros passando: um ou outro,
arranhando o asfalto. Um ou outro automóvel passava por ela, faróis acessos,
bem devagar, sem que se pudesse quase ouvir o ruído dos pneus. Rodavam macios e
discretos, sem destino certo, como se o motorista esperasse por algum sinal ou
pista por onde seguir. Era antes um ruído abafado, como se os ouvidos
estivessem entupidos de cerume. Na pele, a acidez da bruma dava a sensação de
que lhe estavam arrancando os pelos com o desconforto de uma pinça cega. Lívia,
embora com muito medo, caminhou por um tempo longo, guiada apenas pela intuição
de seus passos, indo na direção da Praça da Matriz, onde esperava obter
informações sobre o que se passava na cidade naquela manhã fatídica.
Grande era o temor, mas grande
também a vontade de sobreviver, de saber dos amigos, das pessoas conhecidas e,
principalmente, de Rodrigo. O caminho de Lívia reproduzia a história de nossa
espécie, acostumada a buscar a vida onde só existe a probabilidade da morte,
mas sempre a vida triunfando em sua imortalidade coletiva. A vida, claro, da
espécie, e não a vida do indivíduo, porque essa passa como um sopro. Não
obstante, ela seguia cautelosamente, solitariamente, em busca de alguma
resposta que lhe pudesse devolver a tranqüilidade, resposta que supunha estar
na praça, nos relatos dos amigos de infortúnio, na comunidade dos habitantes
deste imenso vazio branco, a bruma ácida na manhã. Lívia tinha certeza de que,
havendo uma resposta para tudo isto, ela só poderia ser encontrada no meio dos
outros, com os outros.
Temia, sobretudo, cair numa espécie
de vazio, de abismo, que a cerração escondia: um buraco sem fim, um abismo
interminável, uma fratura no asfalto que a conduzisse para uma queda
interminável. Era uma súbita sensação de pavor, como se, depois de cada passo,
uma fenda se abrisse sob seus pés e ela mergulhasse num enorme buraco sem fim.
Foi então que ouviu passos que caminhavam em sua direção, finalmente não estava
sozinha. Alguém caminhava em sua direção, com os mesmos passos tateantes,
vacilantes. Talvez não fosse uma pessoa apenas, mas duas, ou três, que os
passos se misturavam, em quase secreta sincronia. Ao ouvi-los, porém, Lívia
sentiu alguma coisa próxima da euforia ou de alívio. Sim, o medo agora podia
ser compartilhado, não estava perdida. Apesar da névoa e da impossibilidade de
vislumbrar seus parceiros de jornada, sabia que eram pessoas como as outras, em
busca de alguma explicação e de algum sentido para tudo aquilo. É esse um
destino nosso, dedicarmo-nos à decifração dos mistérios do mundo e pensar que
tudo se resolve na posse de umas tantas dessas verdades impronunciáveis. É este
sempre o vício da vaidade humana.
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