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quando padre luis despertou do sono místico, com um
tremor no corpo e na alma, sequer pressentira a presença silenciosa das fiéis
beatas que, aos poucos, iam ocupando os bancos da nave central, sem coragem de
se aproximarem do sacerdote, reverenciado em pleno êxtase. Entraram
cerimoniosamente, pisando de leve, para não perturbar a concentração, ou
deveria dizer, o profundo misticismo do padre. Miravam, com olhos de alarmante
incredulidade, o rosto aceso do sacerdote, parecendo seus trajes iluminados,
brilhantes, como uma transfiguração extática. Uma suposta aura flutuava sobre
sua cabeça, pelo menos é o que disseram as mulheres que juraram ter visto a luz
flutuante sobre a sua cabeça. Ajoelhado, com o rosto voltado para cima, para a
imagem do Senhor morto na cruz, Padre Luis parecia flutuar; e as crônicas da
cidade haviam de registrar que, naquele dia tão absurdo, o corpo franzino do
sacerdote efetivamente flutuou por sobre o altar; todas as beatas juraram ter
visto e testemunhariam a quem quer que se dispusesse a ouvi-las.
A maioria da Assembleia era composta
de mulheres, cujos maridos, namorados, irmãos, pais ou alguém impronunciável
estavam na labuta ou tentando chegar a ela, ou mesmo buscando mais informações
que esclarecessem o mistério da névoa. Essas mulheres, a quem pertence a tarefa
de orar, surpreendidas pelo êxtase místico do celebrante, ficaram a contemplar
a cena como se fora um capítulo vivo do Novo Testamento, ou do Velho, que, para
essa gente, não havia diferença, tudo era a voz sagrada. Nenhuma das beatas
pronunciou qualquer palavra, nem era preciso, a cena falava por si mesma e
todas mantinham a respiração suspensa, o corpo em ausência como se ali não
estivessem, e logo depois estivessem, como uma intermitência que, por suposto,
antecede a presença de Deus. Pois já não disse um poeta que Deus é um grande
intervalo? E que se não é possível vê-Lo, senão se pode pressenti-lo.
Padre Luis levantou-se penosamente,
ainda vacilante em suas pernas dormentes, e pronunciou, solene, as palavras que
abriam a cerimônia, embora não parecesse ser a voz dele, que era rouca e mais
que chegava a cada um como fosse dita à beira do ouvido de cada uma das
mulheres: louvado seja Nosso Senhor Jesus
Cristo.E as beatas, não mais do que duas dúzias, responderam emocionadas,
quase em segredo: para sempre seja
louvado. De braços abertos, como estava o Senhor, no alto, às suas costas,
Padre Luis não conseguia pronunciar o restante do introito, sua voz tornou-se
áspera e aguda, recusava-se a articular na garganta estreita e áspera uma frase
completa, embora sua memória soubesse exatamente o que deveria ser dito. Então,
neste dia estranho, com a névoa mais densa ainda dentro da Igreja de modo que
apenas a silhueta do celebrante podia ser efetivamente vislumbrada, as beatas
viram e juram que viram o sangue escorrendo da testa do padre enquanto seus
olhos choravam as mesmas lágrimas de sangue que choraram tantos homens e
mulheres antes de seus holocaustos. Dos trêmulos lábios, puderam as mulheres
ouvir em seus ouvidos, e apenas para seus ouvidos, as palavras do padre: cordeiro de Deus que tirais os pecados do
mundo rogai por nós, pecadores
Antes
do desmaio -- um baque surdo no chão frio do altar-- sua voz esganiçada
proclamou, numa língua incompreensível para aquele povo, a ladainha: Redimisti nos domine, deus veritatis ,com a espuma descendo dos lábios cerrados e
as mãos crispadas como garras de uma ave
de rapina. Por não saberem bem o que dissessem, a igreja toda reverberou Amen., anunciando o temor de todos,
embora um frio percorresse a espinha e ninguém soubesse exatamente onde estava
o fim desta cena.
Eis senão quando, Padre Luis
flutuou, de um lado para o outro, bem no meio da nave central da igreja. O
corpo ao comprido, braços abertos em cruz, rosto pendente sobre o ombro
esquerdo, uma figura de El Greco deslizava em meio à névoa sem que nada ou
ninguém o sustentasse. Era apenas a flutuação oca de um corpo magro, pálidas
faces, boca escancarada, um homem tentando respirar, que já não estava mais
submetido à gravidade, mas ao imponderável.
As beatas ajoelharam-se e toda a
Igreja esparramou-se contrita pelo chão frio e úmido.
Era impossível saber as horas, nem
lugar, nem quando, muito menos por quê. Quando tudo isto virar palavras
repetidas nas bocas de cada um, possivelmente dirão que é mentira ou alguma piedosa
crendice desse povo analfabeto que vive inventando lenda para distrair o
turista, mas nós sabemos que foi tudo verdade, a mais lúcida verdade naquele
meio-dia de triste agonia e não incomum desespero. Os prodígios aconteciam ante
os olhos de todos, sem explicação, como convém aos prodígios.
Uma canção de imprecisos versos
espalhou-se pela igreja, um canto profundo e triste que podia comover até as
pedras frias que vestiam os muros do convento onde fora construída a igreja.
Enquanto flutuava, seguindo o ritmo
do cântico, o corpo magro do Padre Luis prosseguia desafiando a gravidade,
anunciava o prodígio e enchia de terror aquele povo simples, crédulo, que
talvez não merecesse viver um enigma tão indecifrável. Ou talvez fosse tudo
parte de uma trama que nossa razão ( pobre de nós) jamais poderia compreender.
Tanto melhor, porque assim pode ser contada em um romance, afinal é para isto
que servem os romances, não é mesmo? Para dar sentido ao sem sentido da
realidade.
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