“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 7 de julho de 2012

18º capítulo


18  
            não se falou no mar nesta história que já vai ao final sem que saibamos exatamente do que se trata. E como se pôde esquecer o mar numa cidade banhada por ele, banhada das suas águas clarazuis? Ou quando o sol brilhava -- ontem mesmo brilhava o sol -- , e as areias reverberavam como espelho à luz intensa deste mesmo sol? Pois o mar continua lá, mas somente seu ruído rouco, enfurecido, pois as ondas explodem na praia, imensos caixotes, ruidosa goela primordial. Não se pode ver o horizonte, isto está evidente. A neblina cerrou-nos a paisagem das águas infinitas como se fosse um cortinado branco, opaco. A névoa dança de um lado para o outro, reverbera o suposto sol que brilha por detrás dela; e só se vê a massa meio cinzenta das águas que salgadas ainda são, mas não são mais os brilhantes diamantes de azul vestidos ou a líquida esmeralda dos românticos romances.
            O povo sai de dentro da névoa e se ajunta bem na frente da praia, onde se reuniam lembrando os domingos ensolarados, em que festejavam o fim de semana, com os sambas, as cervejas, os corpos expostos aos prazeres do sol e dos pecados, ao lado dos ricos turistas. Mas não hoje, mas não agora. A densa cerração encolheu os horizontes, a linha do fim do mundo já não mais existe, o que existe é uma parede esbranquiçada, próxima aos olhares de cada um, como se dissesse que o mundo acaba ali e o que vem depois é uma paisagem rasa, um plano limitado que devora todo aquele que ousar ultrapassar a parede. Não se pode mais compreender o infinito mar e seus mistérios, o mar acaba logo ali, ao alcance de todos os olhos. Já não se pode dizer que  é infinito o mar.
            Trágico é o silêncio das bocas fechadas, dos corações aos pulos, das mãos cerradas em outras mãos, o gosto ruim do medo, a saliva e a vontade de ceder à pressa que chega por todos os lados, o medo. Ninguém se atreve, nem mesmo José Inácio, por todos tido como hábil pescador, é capaz de pronunciar uma única sílaba. Talvez não somente por medo, mas por uma cautelosa reverência pelo absurdo cenário que se pode vislumbrar.
            O longo mar salgado que de Portugal roubou as lágrimas, não propriamente de Portugal, mas de suas mulheres, ruge feroz. Seu Antonio disto sabia, sem precisar ter lido em nenhum livro, mas sabia-o de experiência feita, que o salgado deste mar e de todos os outros que porventura existem ou existirão, foram das lágrimas das mulheres  portuguesas, de suas lágrimas que souberam assim a gosto de mar. E o cheiro agridoce da maresia garantindo que ali estava o oceano, mesmo que fôssemos todos cegos, ou de nascença ou por causa do ruço, e como o cão que resolveu permanecer ao lado das pessoas, como fiel guardião de não se sabe o quê. O cão que se chama “Argos”, cujo nome já apareceu em outras circunstâncias marítimas e que deve ser parente daquele outro, quando um inteiro continente se partiu e uma jangada de pedra repetiu os assombros, quase como este que estamos vendo. Lívia, todos mais, e o cão recolhem-se na multidão.
            E nesta calçada da praia pressentida e quase vislumbrada, o povo se aglomera, espantados olhares, narizes ao alto, ofegantes, guarda a respiração como preservasse o ar impregnado de maresia, de cheiro do mar, como se guarda o cheiro do sexo da mulher com quem nos deitamos quando bate o amor em nossa porta, da vontade ou desejo, conforme for, e deixamo-nos afogar, náufragos que somos, do pecado mais querido e mais praticado. E também dos homens que se afogam nos femininos quereres, e as mulheres que sabem quanto valem e podem, por saber esperar mais do que eles, porque já nasceram esperando.

            Quem sem lembra quando e como esse povo começou a cantar? Não era uma melodia festiva e alegre como aquelas que saem dos aparelhos de som que as barracas de praia desfilam, nem eram as músicas estridentes que dos batuques saiam e que tanto irritam os refinados veranistas que por engano escolheram a praia errada. Não. Era antes uma melodia profundamente melancólica, um arrastar de vozes trêmulas, cautelosas, sem muita combinação. Não tinha letra, era um solfejar abemolado, parecendo um mantra, na talvez esperança de que assim se dispersasse a névoa e de novo pudessem eles ter de volta o infinito mar azul, lâmina ensolarada, líquido papiro ou esmeralda, lugar de poemas e emblemas de felicidade.
            Mas não. A névoa recobria ainda mais os olhos e choraram amargas lágrimas de sal e mar, enquanto a melodia se misturava com a névoa de modo que não se sabia o que era mar, o que era névoa, qual coisa eram todos.

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