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não
se falou no mar nesta história que já vai ao final sem que saibamos exatamente do que se
trata. E como se pôde esquecer o mar numa cidade banhada por ele, banhada das
suas águas clarazuis? Ou quando o sol brilhava -- ontem mesmo brilhava o sol --
, e as areias reverberavam como espelho à luz intensa deste mesmo sol? Pois o
mar continua lá, mas somente seu ruído rouco, enfurecido, pois as ondas
explodem na praia, imensos caixotes, ruidosa goela primordial. Não se pode ver
o horizonte, isto está evidente. A neblina cerrou-nos a paisagem das águas
infinitas como se fosse um cortinado branco, opaco. A névoa dança de um lado
para o outro, reverbera o suposto sol que brilha por detrás dela; e só se vê a
massa meio cinzenta das águas que salgadas ainda são, mas não são mais os brilhantes
diamantes de azul vestidos ou a líquida esmeralda dos românticos romances.
O povo sai de dentro da névoa e se ajunta bem na frente
da praia, onde se reuniam lembrando os domingos ensolarados, em que festejavam
o fim de semana, com os sambas, as cervejas, os corpos expostos aos prazeres do
sol e dos pecados, ao lado dos ricos turistas. Mas não hoje, mas não agora. A
densa cerração encolheu os horizontes, a linha do fim do mundo já não mais
existe, o que existe é uma parede esbranquiçada, próxima aos olhares de cada
um, como se dissesse que o mundo acaba ali e o que vem depois é uma paisagem
rasa, um plano limitado que devora todo aquele que ousar ultrapassar a parede.
Não se pode mais compreender o infinito mar e seus mistérios, o mar acaba logo
ali, ao alcance de todos os olhos. Já não se pode dizer que é infinito o mar.
Trágico é o silêncio das bocas fechadas, dos corações aos
pulos, das mãos cerradas em outras mãos, o gosto ruim do medo, a saliva e a
vontade de ceder à pressa que chega por todos os lados, o medo. Ninguém se
atreve, nem mesmo José Inácio, por todos tido como hábil pescador, é capaz de
pronunciar uma única sílaba. Talvez não somente por medo, mas por uma cautelosa
reverência pelo absurdo cenário que se pode vislumbrar.
O longo mar salgado que de Portugal roubou as lágrimas,
não propriamente de Portugal, mas de suas mulheres, ruge feroz. Seu Antonio
disto sabia, sem precisar ter lido em nenhum livro, mas sabia-o de experiência
feita, que o salgado deste mar e de todos os outros que porventura existem ou
existirão, foram das lágrimas das mulheres
portuguesas, de suas lágrimas que souberam assim a gosto de mar. E o
cheiro agridoce da maresia garantindo que ali estava o oceano, mesmo que
fôssemos todos cegos, ou de nascença ou por causa do ruço, e como o cão que
resolveu permanecer ao lado das pessoas, como fiel guardião de não se sabe o
quê. O cão que se chama “Argos”, cujo nome já apareceu em outras circunstâncias
marítimas e que deve ser parente daquele outro, quando um inteiro continente se
partiu e uma jangada de pedra repetiu os assombros, quase como este que estamos
vendo. Lívia, todos mais, e o cão recolhem-se na multidão.
E nesta calçada da praia pressentida e quase vislumbrada,
o povo se aglomera, espantados olhares, narizes ao alto, ofegantes, guarda a
respiração como preservasse o ar impregnado de maresia, de cheiro do mar, como
se guarda o cheiro do sexo da mulher com quem nos deitamos quando bate o amor
em nossa porta, da vontade ou desejo, conforme for, e deixamo-nos afogar,
náufragos que somos, do pecado mais querido e mais praticado. E também dos
homens que se afogam nos femininos quereres, e as mulheres que sabem quanto
valem e podem, por saber esperar mais do que eles, porque já nasceram
esperando.
Quem sem lembra quando e como esse povo começou a cantar?
Não era uma melodia festiva e alegre como aquelas que saem dos aparelhos de som
que as barracas de praia desfilam, nem eram as músicas estridentes que dos
batuques saiam e que tanto irritam os refinados veranistas que por engano
escolheram a praia errada. Não. Era antes uma melodia profundamente
melancólica, um arrastar de vozes trêmulas, cautelosas, sem muita combinação.
Não tinha letra, era um solfejar abemolado, parecendo um mantra, na talvez
esperança de que assim se dispersasse a névoa e de novo pudessem eles ter de
volta o infinito mar azul, lâmina ensolarada, líquido papiro ou esmeralda,
lugar de poemas e emblemas de felicidade.
Mas não. A névoa recobria ainda mais os olhos e choraram
amargas lágrimas de sal e mar, enquanto a melodia se misturava com a névoa de
modo que não se sabia o que era mar, o que era névoa, qual coisa eram todos.
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