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(texto encontrado num velho baú , depois da morte estranha e
anônima de seu autor, igualmente anônimo e cego)
No Forte, no centro da sala-d’armas,
um cômodo todo ele caiado, e as grossas paredes do século XVII, uma pequena
esfera translúcida feria os olhos de todos nós com intolerável fulgor. A esfera
recolhia-se dentro de um cilindro e reproduzia o desenho que servia de epitáfio
ao túmulo de Arquimedes, com seu famoso teorema cujos termos anunciavam a razão
matemática entre a superfície, o volume do cilindro e o da esfera: uma relação
de 2/3. De longe, parecia estar imóvel, porém julguei que se movia sobre o
próprio eixo. Também achei que este movimento era ilusão. O diâmetro do Aleph
(chamemos assim à esfera, como lhe chamou Borges, o cego, estático no meio da
sala, com Argos a seu lado) seria de 10 ou 12 centímetros ,
dentro do cilindro, porém, o espaço cósmico parecia caber inteiro dentro dela e
era ali a origem do nevoeiro, da névoa, do ruço, da neblina e de todo este
inusitado Graal.
O
espaço é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência
em nenhuma, pronunciou o cego,
escandindo as palavras, cuidadosamente. Cada coisa era infinitas outras porque
víamos o resumo de nosso pequeno mundo enevoado. Vimos o infinito mar e a aurora,
vimos a tarde; vimos figuras humanas arrastando-se sob a cerração; vimos as
largas avenidas silenciosas e a Praça da Matriz com seu relógio congelado;
vimos o pálido disco solar inibido pelas nuvens e o cão Argos farejando alguma
saída; vimos os sôfregos beijos entre Lívia e Rodrigo, com a ansiedade dos
amantes des-esperados, a irritação dos governantes da cidade, impotentes,
frente ao fantástico absurdo. E vimos padre Luis flutuando seu voo errático e
as mais soberbas casas e edifícios, o que em segredo se elabora, o que foi
pensado e temido, o sono rancoroso dos miseráveis, o absurdo original e seus
mistérios, enfim, tudo o que o Poeta também viu em seu claro enigma, nós vimos,
siderados, na antessala de Infinito branco vestida, noiva inconcreta.
E surpreendeu-nos, desenhado na
parede da sala, o Criptograma de Pompeia. Não saberemos quem ali o transcreveu,
mas era em tudo semelhante ao mesmo desenho que se encontra numa coluna de uma
antiga mansão na devastada cidade, depois que o Vesúvio a destruiu. Talvez uma
analogia macabra entre o distante passado e o presente incompreensível, mas nós
vimos, na parede, o criptograma, o mesmo que lá esteve e que desafiou as
inteligências e a argúcia de tantos quantos pretenderam decifrá-lo, por
seculares desafios, mas que nossa cidade, enevoada, reviveu não se sabe por
astúcia de quem ou de quê. Ou de Quem ou de Quê.
Eis o criptograma:
R O T A S
O P E R A
T E N E T
A R E P O
S A T O R
Lido em todos os possíveis sentidos,
da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, de cima para baixo e de
baixo para cima, lá está a sentença, a espantosa teodiceia:
ROTAS
OPERA TENET AREPO (OPERA) SATOR, Deus
mantém as obras do homem em sua mão desde
o princípio das coisas.
Suspeitamos então o sentido de nossa
tragédia. Todos nós assentamos que Deus existe, sim, quem talvez não exista
somos nós e que não nos resta outro destino senão a humilde reverência ao
Criador que tudo sabe e tudo vê. O resto é silêncio e sofrimento, angústia e
desespero.
Fez-se escuridão de repente dentro
da sala. Fomos tomados de um sono irresistível e sonhamos que aquela aurora
embaçada de névoa inaugurava o dia que nunca acontecera e de algum modo
celebrava a confusa verdade de que toda essa máquina do mundo nasceu no mesmo
dia em que nascemos nós para o nevoeiro. O nevoeiro era a cifra de nossa
incredulidade, o testemunho de nossa falta de futuro, de nossa descrença e de
nossa vontade enfraquecida. O acontecimento denegado por nós deixava as marcas
de nossa inautenticidade. Não compreendemos o que uma vez se chamou vida e
destino, porque empobrecemos, carentes de uma gaia ciência que nos devolvesse o
sentido de viver.
E fomos tomados do profundo torpor e
dormimos todos em meio à névoa, tocados talvez pela asa de um anjo; dormimos um
sono inquieto, não obstante profundo, de talvez muitas horas, pois acordamos
com os latidos de Argos, o cão, que já se retirava. A luz do sol em nossos
rostos anunciava que ali nascia o dia sem névoa, o primeiro depois dos
acontecimentos, não obstante resolvêssemos, sem uma palavra ser dita,
considerar um dia para nunca mais lembrar. E este ficou sendo nosso contrato,
nosso acordo. Nunca mais. Os relógios marcavam seis horas e quarenta e oito
minutos, enquanto combinamos uma amnésia consentida e voluntária.
Na luminosa manhã, sabíamos que toda
cidade tem seus segredos, nós também temos os nossos. O segredo do dia que
nunca existiu jamais será violado.
Seguimos, cada um, seu caminho e
sobre o nevoeiro, nunca mais nada se disse, embora o esquecimento seja uma
forma de lembrança. Não obstante, cada um de nós leva dentro de si o seu
próprio nevoeiro.
De tudo o que restou, o rastro é o
silêncio. Embora o que se vai aqui escrito seja sua primeira e única violação.
Mas sempre um rastro de algo que um
dia espantou nossa alegria, mas que nós lutamos para reavê-la. E conseguimos,
mesmo custando nossa memória.
Lecturis
salutem
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