19 a melodia eSPALHOU-se por toda parte, tecida pelas vozes trêmulas dos
cantores. Não tinha letra, como aqui se descreveu, era apenas um vacilante
solfejar, uma melodia, um lamento murmurado de gargantas apertadas, na
esperança de que a névoa, afinal, se dissipasse por artes da cantoria ou da
vibração de vozes. Argos, o cão, pôs-se em alerta, erguendo as orelhas
pontiagudas, ouvindo outras melopeias que não podiam os humanos perceber. Não
se pode garantir se melhor ou pior. Rodrigo
abraçou Lívia pelas costas e ela deitou-lhe nos ombros os levíssimos cabelos
louros de sua delicada cabeça, respirando fundo, imaginando; quem sabe, uma
longa e emocionada despedida. Um breve
roçar de seus lábios no pescoço de Lívia que se encolheu como uma criança
medrosa lembrou que a vida ainda pulsava.
José Inácio e
seu Antonio tentavam seguir o murmúrio das vozes, mesmo sem conhecer a melodia,
mas era só para estarem solidários com a dor dos outros. As pessoas buscavam
abraçar-se ou permanecerem de mãos dadas, enquanto a vibração de suas vozes
poderia romper o nevoeiro, como se cristal fosse. Vaga esperança no meio do
desespero, inútil exercício, talvez.
E assim permaneceram por tempo incontável, porque
contá-lo não seria possível sem o tempo, ouvindo as ondas explodindo na praia
em harmonia com os cânticos solfejados e as orações sussurradas, cheios de
temor. A melodia embalava o marulho das ondas.
Eis senão quando, Argos, o cão, emite um latido de
alerta, pois que, do meio do nevoeiro, surge Padre Luis, seguido das beatas e
suas vozes estridentes, interrompendo o silêncio e a reverência do ritual.
Entoavam, com suas vozes agudas, os hinos religiosos, enquanto o padre gritava
com sua voz esganiçada, em tom de flautim: Arrependei-vos,
arrependei-vos antes que seja tarde. A mão de Deus será vingadora. Abram seus
corações que este é o fim dos tempos.
O povo aconchegou-se, as
pessoas abraçarem-se ainda mais fortemente; com medo do que fosse suceder.
Lívia e Rodrigo cingiram os corpos
como se este gesto, tão comum a dois amantes, pudesse significar a salvação da
espécie. Juntos, quem sabe, poderiam sobreviver ao mistério, superar o medo e,
quem sabe ainda mais, pudessem sentir-se comprometidos com o dia seguinte,
podiam repetir o casal do gênesis e recomeçar o gênero humano, mesmo que fosse
para também repetir o equívoco de Deus. Até os sons abafados desta cidade
secreta devem ser outras tantas álgebras e rigorosa linguagem que provavelmente
têm suas chaves correspondentes, suas duras gramáticas e sua fluida sintaxe, e
assim este nevoeiro, que a todos atormenta, pode ser o espelho de coisas
inexplicáveis, pode ser um texto ainda não decifrado. A decifração do enigma
branco não parecia estar ao alcance da inteligência daquelas pessoas, nem mesmo
do padre Luis, que guiava o grupo de beatas em direção ao Forte ,
não se sabia por que razão, se existe
razão nos lunáticos, especulação sobejamente inútil em face dos acontecimentos
aqui narrados.
Quando indagado, padre Luis arregalava mais ainda os
olhos injetados, anunciando, com sua voz profética, que o mistério está no forte, é de lá que vem a neblina, eu vi, eu vi a
revelação. E as beatas seguiam-no mesmerizadas, e todo o público também
resolveu acompanhá-los; afinal, no meio
de tanta dúvida, tanto medo e incerteza, supor uma explicação para o fenômeno
parecia fazer sentido. Portanto, em fila, caminhotateante no meio da névoa,
aquele grupo bizarro seguia o padre que, em transe, entoava cantos religiosos em latim. O povo não os
compreendia, mas isto não tinha a menor importância, pois se entendia que a
jornada em direção ao
Forte poderia ser a solução do mistério na língua da Bíblia.
E isto merecia respeito e mesmo comovida reverência.
Ainda era dia (isso se deduzia da precária claridade),
mas não se sabia quanto faltava para o entardecer e a consequente escuridão que
haveria de suceder com a noite. Era a escuridão da noite o maior de todos os
temores, porque todos seriam atirados numa espécie de desamparo e de cegueira
maior e involuntária. A névoa, associada à escuridão, ampliava o temor de que
algo nefasto estivesse para acontecer. Talvez isto explique porque aquela
pequena multidão se dispunha a seguir o padre em direção ao suposto fim do
enigma.
Embora descrentes, Lívia e Rodrigo
seguiam a procissão, junto com Argos, o cão, que parecia estranhamente
confiante e seguro farejando a rota que seguiam. Argos, o cão, avançava a
alguns metros na frente de casal e de vez em quando tornava o focinho como a
assegurar o acerto da escolha. Sim, era como diziam seus olhos argutos, podem
seguir-me que eu já sei para onde vamos, confiem. O cão trotava seguro, quase
ao lado de Padre Luis, um e outro pareciam saber o que faziam.
Pois este caminhar não incerto apontava para a construção
branca, sólida, plantada no alto do rochedo. O Forte, já de quatro séculos,
garantiu a integridade da cidade, no tempo em que os piratas franceses e
holandeses por aqui passaram, em busca do pau-brasil. Era uma construção
imponente que ainda guardava os sinais de sua petulância orgulhosa. Dali é que
vinham os tiros de canhão, impedindo que a cidade fosse vilipendiada pelas mãos
impuras dos corsários e que suas mulheres conhecessem a ignomínia de um
estupro. A seus pés, pousaram índios e brancos, comerciando o permitido e o
proibido; sob a proteção de sua sombra e era sob o signo de sua imponência que
se podia dormir em paz.
Enquanto dele se precisou, enquanto ao Forte pertenceu a
tarefa de proteger as pessoas e as casas, as ruas e os palácios, foi ele moendo
o tempo, deixando passar os séculos por suas paredes brancas e aos poucos foi
perdendo importância, porque já não se invadiam mais as cidades pelo mar, nem
por piratas, mas por outras formas menos rudes de invadir, nas quais não se
viam armas, mas a riqueza e irreverência petulante dos turistas para os quais
não se necessita de um Forte.
Por isso, hoje, não passa de uma memória longínqua de uma
história de que ninguém se lembra mais. A edificação, sob os cuidados da
prefeitura, é apenas um lugar exótico que anônimos visitantes ocupam sem se
importarem do que fazem ou desfazem. Onde à noite, por exemplo, fogosos casais
exercitaram uns nos outros a mais antiga das coreografias, a do prazer. As
paredes, outrora alvas, estão hoje desenhadas por vocábulos incompreensíveis,
nomes e lugares distantes, de fulano que ama fulana ou de fulano que esteve
aqui em certa data.
Não se pensa que ali passeiam fantasmas de outras vidas,
contando a longa história de uma conquista, e que deviam merecer mais respeito.
Quem se importa com as vidas que circulam por suas
paredes grossas e dos velhos soldados, que passeiam por seu pátio, vigiando,
fantasmas que são, impenitentes, o desprezo do tempo?
Lívia e Rodrigo ,
também José Inácio e seu Antonio, tomaram o mesmo caminho em direção ao
penhasco em que descansava, já por quatro séculos, o Forte. Ah, sim, lá também
estava Borges, ao lado de Argos, o cão, que agora nos guiava pelas entranhas
do caminho. Ele, com sua bengala de cego, tenteava o passo em direção ao
edifício, tendo surgido do fundo de alguma memória funesta há muito dispersa
nas lembranças difusas daqueles insólitos peregrinos. Argos, o cão, era o guia.
Posso dizer que entramos todos nós na sala-d’armas , que
é onde se supunha estar a solução do mistério.
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