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a vastidão da bruma espessa recobriu
toda a cidade, de modo que, nas praias, pelas esquivas esquinas e na
deserta avenida à beira-mar, enxergava-se quase nada. Uma ácida névoa branca e
seca foi diluindo a paisagem, os prédios, os automóveis, a tudo resumindo em um
desenho de vagas silhuetas, difusas, de estranho cenário. Algumas estrelas
claras deveriam florescer na ternura da presumida aurora, mas o ruço opacodenso
nos impede de contemplá-las. Vigia os sonhos de quem lá vive a cerração macia
que recobre os edifícios e espalha sobre a cidade uma névoa leitosa. Que
arcanjo teu sono vela, ó cidade, que dorme? Até onde levarás teu sono? Assim se
repete a lenda de que toda cidade tem seus segredos. Coube-me a solitária tarefa
de contar esta estória, que o narrar tem dessas astúcias, torna o que é, de
natureza sua, incompreensível compreensível ou pelo menos aceitável, conforme
se vê nessa procissão de sonâmbulos que vagam na paisagem.
Na noite do dia anterior, o céu
estivera estrelado, com raro sopro de leve brisa, é verdade, mas de um calor incomum
para os meses de friagem. Aproximando-se agosto, a ventania sopra
impiedosamente e as ruas se tornam desertas; os habitantes se recolhem em
contritas meditações. Como a cidade se construiu em volta de poucas ruas e estreitas
vielas, contrastando-se com a generosa amplidão do mar e aos longos areais das
dunas, o sopro da ventania se confunde com a sonoridade de flautas mágicas. Os
agudos sons penetram o silêncio da noite, o povo escuta os lamentos dilacerados
dos ventos e os figura vozes longínquas de mau agouro, sobre-humanos murmúrios
dos mortos, lamentando as penas da purgação, para aqueles que supõem a morte um
judicioso ajuste de contas, com suas penas e recompensas. Agosto é o mês das
fantasmagorias, que essas vozes murmuram na dor inapelável das penitências. O
dia que não amanheceu amanheceu com os ventos que não chegaram, e nunca
chegarão, porém sucedeu o nevoeiro. Logo mais, talvez, os ventos. Este dia
nunca mais será esquecido, ou será?
Aconteceu de repetirem-se as Palavras
do Testamento Velho e do Novo, para confirmar as visões daqueles que disseram,
tantas vezes, e tantas vezes foram ignorados: que o tempo é circular e eterno o
retorno. Que diante da esfera temporal, não passamos nós de um divertimento do
destino e nada há que se possa mudá-lo, antes e como hoje,e possivelmente
sempre. A nós foi dado o dom de saber dos limites da vida, sem jamais poder
ultrapassa-los e a isso chamam Razão.. Um Deus irônico e muito astuto nos deu o
direito de saber que morremos e isto fez toda a diferença, como estão cansados
de saber todos os filósofos ou simplesmente quem viver demais e nisto se der ao
trabalho de pensar os dias de sua existência.
Do alto, para quem se dispuser a
subir o morro da igrejinha, pode-se ver uma densa massa de bruma esbranquiçada
que os românticos poderiam chamar de véu de noiva, porque é assim que todo o
povo lhe chama, e o povo, como se sabe, é romântico. É como se houvesse algum
casamento a ser realizado naquela manhã. A luz do sol ainda era vaga e fria, porque a aurora nem
vermelha podia ser. Não havendo praticamente horizonte visível, alguém podia
supô-lo, principalmente se fosse um morador da cidade, acostumado ao espetáculo
exuberante do amanhecer, tingindo de vermelho o fim do mundo e inundando de luz
branca toda a paisagem.
Aos poucos, com a resumida claridade
da manhã, o povo foi despertando para entrar em um pesadelo, talvez longo,
talvez curto, mas sempre um estranho pesadelo.
Neste momento, a cidade está coberta de cerração e de vozes temerosas em
secretas orações, de muitos temores.
A cerração recobriu de branco tudo o
que os olhos podiam acaso vislumbrar. Somos matéria de sonho e sono, sem saber
quando é um e quando é outro. Que nossa vida curta, cercada de sono, e isso só
faz confirmar a intuição de um certo pesonagem magistral que também conheceu a
bruma em seu castelo, em
sua Dinamarca apodrecida.
Longo será este dia. Muitos de nós
ficaremos paralisados pelo estupor, outros, um pouco mais atirados, tentarão
entender o que se passa, mas, no fundo, é todo um mistério gasoso que recobre as
praias, as ruas, as avenidas., um mistério a ser decifrado por quem não dispõe
de outra coisa senão uma infinita paciência e igual credulidade.
Mergulhados na névoa branca, quase
nada se pode enxergar. Tateia-se cuidadosamente, enquanto o trânsito cessa e as
ruas se tornam desertas. Estranha manhã aquela, numa cidade qualquer.
Nem os pássaros se podem ouvir. Até
parece que os pardais, os colibris, os quero-queros, os sabiás, os
pintassilgos, as cotovias, se as havia, não mais chilreavam. Nem os bem-te-vis
denunciavam o que viam, nem as rolinhas apagavam do chão as trilhas que prenunciavam
a mítica fuga do Senhor, o
fogo-apagou-por-aqui-não passou. Nem os coleiros, engalanados em seus de
fraques de gala, apareceram naquela suposta manhã. É que o fogo que por aqui
passou, ninguém jamais apagou.
Um céu de chumbo impede ver o sol. A
madrugada parece longa, muito longa, demasiadamente longa, enquanto a névoa se
espicha, preguiçosamente, e recobre cada canto da cidade.
Em breve, esse povo se levanta para
o trabalho e os boêmios esfregarão os olhos, enquanto cospem o amargo da noite
e provavelmente dirão que o sol é um canalha, porque os desperta para a vida
dos outros, que não a deles. Não havia sol, apenas a branca claridade a cegar,
a cegar.
É assim que este dia não amanhecerá.
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