“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 10 de março de 2012

1º capítulo


1
            a vastidão da bruma espessa recobriu toda a cidade, de modo que, nas praias, pelas esquivas esquinas e na deserta avenida à beira-mar, enxergava-se quase nada. Uma ácida névoa branca e seca foi diluindo a paisagem, os prédios, os automóveis, a tudo resumindo em um desenho de vagas silhuetas, difusas, de estranho cenário. Algumas estrelas claras deveriam florescer na ternura da presumida aurora, mas o ruço opacodenso nos impede de contemplá-las. Vigia os sonhos de quem lá vive a cerração macia que recobre os edifícios e espalha sobre a cidade uma névoa leitosa. Que arcanjo teu sono vela, ó cidade, que dorme? Até onde levarás teu sono? Assim se repete a lenda de que toda cidade tem seus segredos. Coube-me a solitária tarefa de contar esta estória, que o narrar tem dessas astúcias, torna o que é, de natureza sua, incompreensível compreensível ou pelo menos aceitável, conforme se vê nessa procissão de sonâmbulos que vagam na paisagem.

            Na noite do dia anterior, o céu estivera estrelado, com raro sopro de leve brisa, é verdade, mas de um calor incomum para os meses de friagem. Aproximando-se agosto, a ventania sopra impiedosamente e as ruas se tornam desertas; os habitantes se recolhem em contritas meditações. Como a cidade se construiu em volta de poucas ruas e estreitas vielas, contrastando-se com a generosa amplidão do mar e aos longos areais das dunas, o sopro da ventania se confunde com a sonoridade de flautas mágicas. Os agudos sons penetram o silêncio da noite, o povo escuta os lamentos dilacerados dos ventos e os figura vozes longínquas de mau agouro, sobre-humanos murmúrios dos mortos, lamentando as penas da purgação, para aqueles que supõem a morte um judicioso ajuste de contas, com suas penas e recompensas. Agosto é o mês das fantasmagorias, que essas vozes murmuram na dor inapelável das penitências. O dia que não amanheceu amanheceu com os ventos que não chegaram, e nunca chegarão, porém sucedeu o nevoeiro. Logo mais, talvez, os ventos. Este dia nunca mais será esquecido, ou será?

            Aconteceu de repetirem-se as Palavras do Testamento Velho e do Novo, para confirmar as visões daqueles que disseram, tantas vezes, e tantas vezes foram ignorados: que o tempo é circular e eterno o retorno. Que diante da esfera temporal, não passamos nós de um divertimento do destino e nada há que se possa mudá-lo, antes e como hoje,e possivelmente sempre. A nós foi dado o dom de saber dos limites da vida, sem jamais poder ultrapassa-los e a isso chamam Razão.. Um Deus irônico e muito astuto nos deu o direito de saber que morremos e isto fez toda a diferença, como estão cansados de saber todos os filósofos ou simplesmente quem viver demais e nisto se der ao trabalho de pensar os dias de sua existência.
            Do alto, para quem se dispuser a subir o morro da igrejinha, pode-se ver uma densa massa de bruma esbranquiçada que os românticos poderiam chamar de véu de noiva, porque é assim que todo o povo lhe chama, e o povo, como se sabe, é romântico. É como se houvesse algum casamento a ser realizado naquela manhã. A luz do sol  ainda era vaga e fria, porque a aurora nem vermelha podia ser. Não havendo praticamente horizonte visível, alguém podia supô-lo, principalmente se fosse um morador da cidade, acostumado ao espetáculo exuberante do amanhecer, tingindo de vermelho o fim do mundo e inundando de luz branca toda a paisagem.
            Aos poucos, com a resumida claridade da manhã, o povo foi despertando para entrar em um pesadelo, talvez longo, talvez curto, mas sempre um estranho pesadelo.
Neste momento, a cidade está coberta de cerração e de vozes temerosas em secretas orações, de muitos temores.
            A cerração recobriu de branco tudo o que os olhos podiam acaso vislumbrar. Somos matéria de sonho e sono, sem saber quando é um e quando é outro. Que nossa vida curta, cercada de sono, e isso só faz confirmar a intuição de um certo pesonagem magistral que também conheceu a bruma em seu castelo, em sua Dinamarca apodrecida.
            Longo será este dia. Muitos de nós ficaremos paralisados pelo estupor, outros, um pouco mais atirados, tentarão entender o que se passa, mas, no fundo, é todo um mistério gasoso que recobre as praias, as ruas, as avenidas., um mistério a ser decifrado por quem não dispõe de outra coisa senão uma infinita paciência e igual credulidade.
            Mergulhados na névoa branca, quase nada se pode enxergar. Tateia-se cuidadosamente, enquanto o trânsito cessa e as ruas se tornam desertas. Estranha manhã aquela, numa cidade qualquer.
            Nem os pássaros se podem ouvir. Até parece que os pardais, os colibris, os quero-queros, os sabiás, os pintassilgos, as cotovias, se as havia, não mais chilreavam. Nem os bem-te-vis denunciavam o que viam, nem as rolinhas apagavam do chão as trilhas que prenunciavam a mítica fuga do Senhor, o fogo-apagou-por-aqui-não passou. Nem os coleiros, engalanados em seus de fraques de gala, apareceram naquela suposta manhã. É que o fogo que por aqui passou, ninguém jamais apagou.
            Um céu de chumbo impede ver o sol. A madrugada parece longa, muito longa, demasiadamente longa, enquanto a névoa se espicha, preguiçosamente, e recobre cada canto da cidade.
            Em breve, esse povo se levanta para o trabalho e os boêmios esfregarão os olhos, enquanto cospem o amargo da noite e provavelmente dirão que o sol é um canalha, porque os desperta para a vida dos outros, que não a deles. Não havia sol, apenas a branca claridade a cegar, a cegar.
            É assim que este dia não amanhecerá.

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