3 A preguiça nos resguarda da culpa que porventura
padecemos, a desculpa pode ser o frio. Nessa cidade, não costuma
fazer frio, mas faz um tanto agora. O sol ainda não desenhou sua luminosidade
nas frinchas da janela do quarto. O despertador, com as horas vencidas, goteja
os minutos derramados porcimadesobre a mesa de cabeceira, por onde escoam as
horas, pelo vão da porta do quarto enquanto ainda escurece e a manhã teima em não
surgir. Levantar, ir ao banheiro, trocar
de roupa para a ginástica. Depressa para esquentar o corpo. Coragem para
começar o dia, ruminando o sono sobrante da madrugada., é Lívia que se prepara
para outro dia depois da noite óbvia. Silencia o apartamento, sem o rumor
estridente da louça, sem o cheiro morno do café da manhã; como todas as manhãs.
Sons de um cuidado com ela e o apartamento silencioso é enorme e preguiçoso,
parece não produzir vida, tanto o silêncio. Lívia olha para o relógio: atrasada de novo, mas é por causa do frio.
A mãe ainda não pôs a mesa da manhã. Sem o café, e os ruídos; as luzes na
cozinha – frias – sumiram com todas as coisas íntimas, tudo está esquecido e
dormente. Lívia e a mãe, sozinhas, vivendo juntas desde a separação recente. A
mãe viúva,cuida de Lívia como jardineiros cuidam de plantas, porque sabem as
mães, e somente elas, estarem ao pé de suas filhas sem nada exigir, sempre
dispostas ao cuidado de quando elas precisam, e Lívia precisava, muito. .E nem
é preciso que algo se diga que, neste universo particular do amor, as palavras
são sempre dispiciendas. Reunir forças, levantar, dizer pai-nosso que estais no céu (não dizer: perdoai nossas dívidas,trocar por ofensas, erros do catecismo, inaceitáveis na moderna teologia!).
Vestir a roupa da ginástica e caminhar meia hora na praia. A friagem, o
inverno, bem na hora. Lívia afinal se ergue e, lentamente, afasta as cortinas
da janela, olha o mar e o luzeiro-sol-nascente que devia tingir de vermelho
todo o quarto, porém não está, não há sol, que não avermelhou; o quente do sol
que não consolou os sobressaltos da noite. Um dia sem aurora, como pode isto
ser?
Ah,
Lívia, tão bonita, vestida com uma camisola de lã, curta, e as migalhas do sono
pendendo nos olhos verdes, verdes como
são as cores do belo corpo de Lívia... Ah!,
Lívia, ele te beijou, não foi? Te beijou de novo. Depois da aula da faculdade,
trouxe você até a porta do prédio: Lívia,
eu te amo. Não, ama nada, você só me quer. Quero, claro, mas te quero sempre.
E um beijo furioso, de língua, na boca semicerrada de recusa, ou pudor, (seria
pudor?). Amanhã a gente se fala, agora
não. Vou subir. Não foi dito com a insípida frieza de uma frase, mas com
uma sofreguidão de mãos, uns requebros na cintura e uma provocação de pernas e braços,
um jeito nos cabelos, uns olhos de promessas, uma medida pressa estudada. Uma
recusa de lábios de promessa, um fulgor no rosto. Ela não sentiu mais do que
suas carnes dormentes pudessem traduzir. Não lhe tremeram as pernas, nem lá nos
embaixos abriu-se flor nenhuma, porém alguém estivera ali: moço rico, bonito,de
família de posses.Quantos acidentes impedem o amor de florescer, para quem
acredita nessas coisas, não é Lívia? Ainda o outro está presente, no cheiro, na
força dos braços, ainda o outro está em suas vontades dela, ainda é quem acende
o gozo, ferve a pele, enlouquece a alma. E outros pensamentos intrusos nos
dizem que a vida é curta, que tudo pode enquanto se vive. Isto que lateja nos
vazios é a força do Amor e da vida.
Lembra Lívia, a mãe que dizia: já
não és mais uma criança e estás sozinha, sem marido, sem segurança, Lívia, sem
conforto, sem fortuna. Isso de amores, a vida põe e dispõe...Ah! Lá embaixo
estás morta, querida. Lá embaixo anda a memória do outro, que se foi numa
madrugada infindável. Quem abrirá, com dedos antigos, outra vez, a rosa azul
desse teu ventre encerrado? Será possível colher outras rosas? Tua roseira
morreu, Lívia, ainda em flor? Flor se corola, amargo exercício de negar, isto é
tu, Lívia.
Depois do beijo, a rápida fuga, vertiginosa Lívia, linda, lindacobiçada.
Este corpo há de ser um pasto de prazeres, um prêmio, uma festa para moço rico,
mas também a salvaguarda para os dias difíceis. Decide, mulher: no comércio do
mundo não se pode pensar em culpas e pecados. O amor se foi com o outro, e tudo
murchou, o filho perdido também murchou, murchou teu útero, secou tua alma, mas
a vida recomeça na urgência dos dias e seus presumidos pecados.
Deves aceitar este nada ínfimo ou
deves arriscar novos amores? São dilemas, Lívia, são dilemas das mulheres que
ainda aprendem a amar por si mesmas, e não ser uma boneca de um homem que dela
faz uso e desuso e fruto ocasional.
A hora arrastava, (atrasada de
novo), trabalho começando às sete... Foi preciso cancelar a caminhada na praia.
Agitou-se num sobressalto; nervosa, escancarou as cortinas: a paisagem branca
sob a névoa leitosa, a praia já não havia, nem o mar; do velho Forte, podia-se
ver apenas a difusa silhueta. Deus do
céu, o que houve? O apartamento em demorado silêncio, o café (onde o
cheiro?) os ruídos, a louça, as estridências, a claridade obscura da manhã,
onde estavam? O relógio aponta seis horas e quarenta e oito minutos. Lívia está
atrasada, tudo está parado, o tempo congelado, as ruas caladas e o medo côncavo
do dia...
Lívia gritou como se a solidão
branca na manhã nebulosa fosse o começo de um enredo sem o consolo dos sonhos
despertados e no teto do quarto se estampasse um imenso interrogante:
Mãe?!
A mãe não ouviu, talvez estivesse
ainda dormindo. Lívia estava só, olhando a paisagem branca pela janela. De
repente, o apartamento pareceu imenso, vastíssimo como o mar. As paredes eram
estranhas, o teto também, os ruídos matinais desapareceram e um outro mundo
começou, como uma fruta não escapa ao destino de ter sido semente. Um outro
mundo, pálido e silencioso, que não se pode compartilhar porque tudo nele é
grande demais, lento demais, frio demais.
Havia o abandono e a certeza de
estar só; o primeiro mortal sobre a terra; o primeiro som de alguma palavra, a
palavra que lhe poderia retribuir o sentido desta insólita manhã:
Mãe???
O
mundo não respondeu, a rua não respondeu, não responderam as gralhas que, todas
as manhãs, açoitavam as janelas com seus gritos intermitentes. Não veio a nesga
de sol, a mesma que iluminava a mesa de cabeceira e feria-lhe os olhos,
anunciando a brevidade da manhã naquele começo de primavera.
Não era mais seu mundo familiar. Os
móveis, as cortinas, a cama desmanchada, o relógio silencioso perderam seu
poder de referência e já não significavam mais nada. O quarto era estranho, as
portas se abriam para algum abismo, a sala na semi-escuridão dava ao ambiente
um enigmático tom de mistério.
Nem a nesga de mar, entrevista entre
os prédios em frente, aparecia. Antes, era uma massa branca de névoa úmida a
bailar suavemente, em surdo balé silencioso. Lívia não sabia onde estava, tudo
perdera a referência no meio do nada esbranquiçado.
Ainda tateando, Lívia procurou
caminhar um pouco pelo quarto. Cobriu com inútil pudor um pedaço de seio que
explodia pelo rasgo da camisola, tocou-o delicadamente, num gesto de maternal e
inconsciente cuidado, longe de invisíveis olhares. Mas puro gesto, não havia
criança a ser amamentada, só nos sonhos, só nos sonhos de Lívia, só na dor de
ter-lhe sido negado o milagre de ser mãe.
A vertigem melhorou um pouco depois
que ela caminhou pelo quarto. Sentiu-se um tanto mais disposta, as faces um
pouco mais coradas. Lentamente, pôde resumir o dia anterior e a noite. Pôde
entender onde estava, mesmo sem os ruídos da manhã. Mas alguma coisa muito
estranha acontecera ao longo da madrugada.
Respirou fundo, ergueu o corpo e,
abrindo a porta do quarto pôde, finalmente, pronunciar em voz alta como
houvesse saído de um pesadelo.
Mãe!!??
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