“Uma cidade do interior, a beira mar, amanhece envolvida por estranho nevoeiro.
Seus moradores vivem a angústia de não saberem exatamente o que se passa.
As autoridades, atarantadas, não conseguem atinar com a causa do desastre,
Uma vez que ninguém pode entrar ou sair da cidade.
Afinal, em um surpreendente desfecho, a vida retoma seu caminho,
Mas os habitantes serão os mesmos?
O nevoeiro teria desaparecido para sempre,
ou estaria em outro lugar?”

sábado, 31 de março de 2012

4º capítulo


            4
    não chegavam os ônibus à rodoviária densamente enevoada. Os funcionários da Empresa Intermunicipal de Transporte Coletivo afixavam avisos de atrasos, segundo relatos que recebiam dos motoristas, comunicando, por precários bilhetes e esparsos telefonemas, quando ainda funcionavam os aparelhos, a impossibilidade de conduzirem seus veículos pela singela razão de que não se enxergavam dois dedos adiante do nariz. Os contatos foram escasseando e os aparelhos celulares emitiam um ruído gasto de madeira crepitante. Desnecessário dizer que também os computadores se tornaram inúteis: a internet caiu; também os telefones comuns não se comunicavam com quem quer que fosse, nem dentro nem fora da cidade. Por volta das sete horas da manhã, os pontos de ônibus abrigavam centenas de vultos esmaecidos pelo branco da névoa. Viajantes insones, nos pontos dos ônibus, alarmavam-se com a ausência de notícias e de condução. O chefe de operações concluiu que a cidade estava ilhada e que a causa era o ruço.
            Enquanto isso, uma bizarra procissão de vultos humanos irrompia pelas ruas, em meio à fumaça branca e leitosa em demanda de seus postos de trabalho. Uma fila interminável de homens e de mulheres procurava chegar aos empregos, apesar de tudo. O patrão poderia descontar de seus miseráveis salários o dia perdido, apesar da cerração. É a sina dos humilhados da vida, pagar com o infortúnio pessoal o que lhes manda a natureza, mesmo quando a desgraça é coletiva, porque, neste mundo que é nosso – ou deveria ser – o lucro é sagrado e em Deus se confiam as moedas e suas esfinges, e mesmo se agradece quando o caos se apresenta.
            Diga-se, no entanto, que se tratava de um caos silencioso. Apesar de temerosos, os homens e mulheres seguiam resignadamente, sem nada dizerem. Era como se o nevoeiro fosse familiar, natural, tratando-se de um pequeno acidente que, no fim das contas, desapareceria sem deixar vestígios. De tanto ver desgraças e com elas sofrer, essa gente foi se tornando insensível e sem esperança.
            As lâmpadas das ruas não estavam todas ainda acesas; nos poucos postes com iluminação, a luz se refratava na neblina, e se tornava pálida e difusa; um bruxuleio incapaz de iluminar suficientemente qualquer coisa, capaz apenas de indicar o caminho por onde se devia seguir, caso alguém resolvesse arriscar-se a ir mais longe. As pessoas tentavam chegar aos locais de trabalho em tempo e hora previstos. A marcha prosseguia formando uma longa fila de espectros, lentamente, para não tropeçar no asfalto, em fila indiana, só faltando assentar com as mãos os ombros de quem ia à frente. Um desavisado observador poderia supor tratar-se de um bando de festivos colrgiais, seguindo para uma inocente sala de aula, onde lhes esperavam dedicados professores, ocultos pela névoa pálida, ou quem sabe uma fila de cegos em demanda de certo Tirésias que sabia ler os sinais, por suposto de que as neblinas fossem sinais e que houvesse ali algum Tirésias ressuscitado de tão longes terras e não menos estranhos mitos. Afinal, esse Tirésias, por ser cego, é que pode saber a verdade, mas, por desgraça, não costuma dizer ao que veio, porque falava uma língua indecifrável para ouvidos meramente humanos.
            A inusitada fila serpenteava pela beirada das calçadas até que encontrava um ponto de ônibus. Ali, todos se detinham e se agrupavam, comentando, em baixa voz, a situação em que se achavam. Mas, por enquanto, nenhum ônibus apareceu e tinha-se a impressão de que, naquele dia, nenhuma condução haveria para levá-los ao trabalho.
            De repente, por toda a cidade, desenhou-se um vasto cenário de corpos deslizantes no meio da brancura das nuvens, silenciosamente, resignadamente, em razão do dia incomum, procurando chegar ao trabalho, mesmo sem os ônibus, mas com a força do hábito ou do medo de perder o emprego.
            E assim seguiam os autômatos humanos, em longa procissão, cautelosamente, para a jornada de trabalho, ao invés da jornada dos desejos, porque, por desejo mesmo, era de se permanecer em casa, ao abrigo da proteção de seus lares, esperando que alguém lhes desvendasse solução para o estranho enigma que os surpreendera.
            Mas o medo do desemprego ou da falta ao trabalho ainda impelia-os a correrem todos os riscos, mesmo o de enfrentar uma situação incompreensível. Bravo povo esse nosso!
            Alguns automóveis passavam devagar, com os vidros fechados, e os motoristas duplicando a atenção. Os sinais de trânsito não funcionavam de modo que, a qualquer momento, poderia haver algum acidente. Não havia policiais a orientar o trânsito, mesmo sendo este pouco e raro, e aqueles, idem.
            As bicicletas, símbolo do transporte urbano da cidade, já que eram milhares, também desapareceram, como desapareceram as conversas alegres de seus condutores, o canto de louvor de alguns ciclistas, enquanto pedalavam, e a festiva comemoração de tantos outros que falavam de seus times de futebol e assim a jornada ficava mais alegre naquela procissão sobre duas rodas. Mas não era de desejos a jornada, como já aqui foi dito.
            A estranha manhã em que a cidade parou foi aos poucos se tornando um grande mistério. A névoa opaca que deixava os olhos doloridos e queimando já não era desconhecida de ninguém. Já quase todos os moradores perceberam que algo de inusitado ocorrera com a cidade. Era a hora e a vez de alguma explicação.
            Era, porém, bela a paisagem, sobretudo quando se contemplava o mar, despossuído de horizonte, porque a névoa formava uma imensa cortina, como acontece em um teatro antes de a peça começar.
            Se a cortina se abrisse, que drama contaria?Ou que tragédia?

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