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PODEM CHAMAR DE jOSÉ inácio
QUE saiu de casa cedo, bem mais cedo que de seu comum
hábito, como não usava fazer havia tantos anos. O fatigado pescador de pele
áspera e dura, ao caminhar, bem estranhou a névoa. Sabia que, no inverno, é
normal haver neblina, mas nunca as nuvens pastosas que o impedem de ver o
inteiro caminho, por isso é preciso ir devagar, com cautela, de passos
comedidos. Para ele, não era este grande problema algum; desde menino, acordava
às quatro e meia, ainda com o céu estrelado, e seguia com o pai e o sono para a
labuta matinal da pesca, mas não com demasiada bruma, nem tão cedo assim. Cada
esquina, cada curva do caminho que levava ao ancoradouro, ele conhecia de olhos
fechados, ou pesados de sonolência e desamparo. Seguia com o velho Honório,
mastigando a noite e ouvindo os pigarros severos do pai, esforçando-se por
segui-lo na rude jornada de pescadores O pai transformava essas jornadas em
silencioso exemplo da dura vida. Naquela madrugada, depois de tantos anos, o
ruço não parecia igual ao das outras vezes e não se pretendia chamar nevoeiro,
mas ruço, que aquele outro nome, nevoeiro ou névoa, era para os bem letrados e
os poetas, quando o manto embranquecido dava ares de vaga literatura. Estava
espesso o clima, difícil de respirar; ao invés da sensação cortantefria da
bruma; José Inácio sugava o ar com esforço, com o vigor de seus vastíssimos
pulmões, habituados aos ventos livres e soltos do mar alto. Ardiam-lhe os
olhos, o ruço cortava feito navalha e ele desejou beber um copo de café bem
quente que lhe trazia o conforto do calor e o sabor da memória perdida na
infância, com o pai. O sentimento não passava de uma vaga sensação que seu
precário vocabulário não podia definir, mas não significa que não sentisse,
significa que o não traduzisse. Fora ele um homem letrado, saberia que as
memórias indizíveis é que são as que mais importam, pois é com elas que se
escrevem poemas e se fazem literaturas, boas e más. Que é com os pensamentos
invisíveis o fazer dos poetas. Também é com elas que as boas intenções povoam o
inferno, principalmente quando a elas nos entregamos.
Fazia parte de um antigo ritual de
pescadores, que ele aprendera com o velho Honório, de parar no bar do seu
Antonio, engolir um copo bem quente do café preto. Nos dias de luxo, vinha com
leite. Antes mesmo dos cumprimentos, dos bons dias ao rude Antonio, cuja cara
fechada recusava intimidades; a corrente morna da bebida enchia de vigor o
ânimo dos pescadores, cujas conversas se aqueciam ao sabor das brincadeiras. Só
depois é que seu pai explodia o vozeirão num bom-dia estridente e desinibido, por
modo de atiçar desaforos e chamar sobre si a importância que supunha ter. Fora
o chefe, o líder, o capitão seu Honório.
Seu Antonio sempre respondia com um resmungo ríspido como se gentileza
fosse desaforo. Respondia assim porque eram, os dois velhos, íntimos, ambos
amassaram o pão da vida e sobreviveram às agruras do trabalho rude. Às vezes,
dependendo de talvez seus sonhos, mal ou bem sonhados, seu Antonio retrucava: Bom dia por quê?ou, bons dias para todos, ninguém adivinhava qual das duas falas se
seguiriam. Seu Antonio, com certeza, não passou a dura existência distribuindo
sorrisos. Um bom dia burguês não é para quem mói a vida na aspereza de um
precário quiosque junto à praia. Sua dura existência repetia um pouco a pátria
de onde viera, pátria de camponeses que um dia conquistaram o mundo, mas isso
foi há muito tempo, um tempo difícil de crer e que se tornou uma herança
insuportável denunciada nos livros de história de seu país, por isso seu
Antonio não conhecia com detalhes a fantasia secular de sua Pátria, nem dela
podia se orgulhar. Aquela grandeza perdida não lhe permitia a aristocrática
delicadeza dos bem educados, pois dela jamais participou, exceto na pouca
escola que tivera na crua infância do Mondego, antes de cumprir o destino de
sua terra: viver longe dela e fornecer braços baratos ao mundo, vivendo do
áspero e da ferocidade do dia.
Seu Antonio teria a idade provável do velho Honório; se não estivesse
este descansando no fundo do mar alto como convém aos pescadores de verdade.O
mar é sempre o túmulo mais digno que se pode ter, sendo pescador. Talvez
pudessem espichar os longos silêncios com que dialogavam mundos improváveis,
seu Antonio e o velho, sob o olhar inocente do pequeno José Inácio a dizer um
ao outro coisas que menino não podia compreender, mas podia suspeitar dos risos
escancarados e dos olhares escandalosos que lançavam aos corpos das mulheres
que por eles passavam, dos ditos escandalosos que a criança mal podia
compreender. Mas compreendia que não era para contar para a mãe.
No entanto, que malícia demoníaca
impedia José Inácio de enxergar, naquela manhã, a birosca do seu Antonio?! A
cerração espessa em torno do pescador impedia-o de vislumbrar com nitidez o que
a volta dele se ia tornando vago, fluido, amorfo. José Inácio estancou o passo
e mirou o céu, branco branco branco, sem ser céu. Sem nada compreender e menos
ainda entender, José Inácio temeu pela faina do dia. O barco não vai sair, não vai ter peixe para vender. E foi
caminhotateante que chegou ao quiosque. Tudo fechado, nem o tampo de madeira
que servia de balcão e janela, simultaneamente, estava arriado. Não se sentia o
cheiro sempre-memória do café, celebrando o dia. A névoa brancoleitosa
ardia-lhe os olhos ressecados. Seu Antonio não abriu o bar naquela quase manhã.
(Nunca tinha acontecido, não que se soubesse), nem os pescadores apareceram,
portanto não tinha café, só a bruma ardia sem alívio, acidamente intrusa.
Em silêncio, José Inácio sentou-se
cauteloso, como uma pálida esfinge, no banco de madeira e torceu para o sol
iluminar o céu opaco, seu Antonio acordar, o quiosque abrir, a bruma evanescer
e este enredo começar, ou sequer existir, se acaso a névoa levantasse. Mas não
levantou, nem agora nem mais tarde.
José Inácio, na solidão da manhã
estranha, ainda tentou ouvir as ondas quebrando na praia, talvez chamando-o
para a labuta, mas não ouvia direito, era como se uma grande caixa de veludo
envolvesse as ondas, sem se ouvir o som de elas quebrando.
Esfregou os braços para espantar o
frio, encolheu as pernas fortes, abraçando os dois joelhos, em atitude de
inquieta e desequilibrada espera uterina.. De sua boca seca, uma palavra
brotou, áspera, como a desesperança:
Pai!?
Que
demoníaca malícia recobrira a cidade daquela maneira? Já se sabe que os
mistérios do mar são intensos e infinitos. O grande mar é maior do que pode
supor nossa inquieta segurança, ele pode tudo ou mais. Então, este nevoeiro
denso e ácido podia ser uma desses mistérios sem fim. Se o pai estivesse vivo,
sabia o que fazer, mas eu não, sou pouco para tanto segredo.
José Inácio era ainda moço e não
sabia ainda de todas as coisas que deveria saber um pescador experiente. O pai
morrera muito cedo. De todas as coisas que com ele aprendeu a gostar: o
silêncio prudente no meio do mar, as vagas mansas balançando o barco, os longos
suspiros olhando o nascer do sol avermelhando o horizonte, tudo isto ainda era
insuficiente para fazê-lo um homem. E naquela manhã incomum, com o nevoeiro
adensando, o barco sumindo no meio do branco, José Inácio sentiu-se pequeno
como um grão de milho, sem saber o que fazer.
E assim, meio estirado no precário
banco de madeira, ele torcia para que o sol nascesse afinal e dissolvesse a
tristeza da madrugada.
Tinha sim, muita coisa ainda por
aprender, mas tinha também de buscar o pão de cada dia, buscar os peixes,
vendê-lo por preço vil e esperar que as coisas melhorem, com a ajuda de Deus.
A palavra outra vez brotou como
desprotegida de seus lábios ressecados:
Meu
Pai???
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